Cinema independente na luta contra preconceitos

A visão de Michel Ramos. O pesquisador e cineasta conversou com o ‘Foca no Peixe’ sobre cinema e a luta da comunidade LGBTQIA+

Por Ana Raquel Lelles e Marcelo de Angelis 

Não é segredo que o cinema mainstream, assim como outras áreas da sociedade, é predominantemente dominado por homens brancos cisgêneros e héteros. Historicamente, as minorias sociais não são representadas nos filmes e sofrem com a falta de apoio e representatividade nas produções. 

Porém, com o aumento do consumo do cinema independente pela sociedade, este cenário vem mudando. Fugindo de grandes produções, a arte dá voz a pautas de minorias sociais e descentraliza o poder. 

Apesar de mudanças lentas e problemáticas que abordam, até mesmo, pequenas produções, o cinema está em constante evolução. O realizador e pesquisador de cinema queer e LGBTQIAP+, Michel Ramos, em entrevista exclusiva ao ‘Foca no Peixe’, explicou como o cinema independente pode ser uma transformação no mercado de trabalho para profissionais do audiovisual que fazem parte de minorias sociais. 

“O cinema independente sempre foi uma das poucas possibilidades de se falar de maneira mais escancarada sobre questões muito íntimas que o grande cinema, o cinema hollywoodiano, o Cinema Clássico e as grandes mídias não abordam”, comenta Ramos. 

Ele reforça que as produções cinematográficas sempre foram dominadas por um grupo específico. Assim, as pautas discutidas no desenvolvimento de um filme, como o roteiro e as principais funções, ficam centralizadas nesta classe social, excluindo a pluralidade humana. 

Mas, o cinema independente, por natureza, aborda e coloca em relevância as minorias sociais, questionando a sociedade. “O cinema independente sempre foi o veículo de colocar esses corpos incidentes ou marginalizados de uma maneira mais escancarada”, relata Ramos.

A GRANDE QUESTÃO

Apesar do poder revolucionário da arte, para Ramos, a grande questão do cinema independente é: “quem assiste e onde chegam esses filmes?” 

“Os grandes cinemas não estão interessados no cinema independente. As pessoas, principalmente o público brasileiro, não tem a tradição de buscar filmes

independentes. Então, acabamos vendo eles em circuitos restritos, como em festivais, mostras e cineclubes. Que são extremamente importantes. Mas, é um nicho muito fechado. Não conseguimos, infelizmente, muitas vezes, levar esse cinema para o grande público”, pontua. 

Apesar disso, Michel ressalta que existem bons exemplos de produções brasileiras LGBTQIA + independentes que “estouraram” esta bolha e alcançaram um grande número de pessoas e exibições importantes ao redor do mundo. “Recentemente, tivemos o filme ‘Bixa Travesty’, dirigido por Claudia Priscilla e Kiko Goifman, que fez tanto barulho, que conseguiu com que algumas salas de cinema comercial tivessem, quase que obrigatoriamente, que colocar uma sessão de exibição porque tinha público para assistir”, relata.

PROTAGONISMO

Além de levar a arte independente para outros públicos, é importante também aproximar a realidade das minorias sociais ao espectador em geral. Segundo Michel, muitas vezes, em produções audiovisuais, esses personagens acabam servindo como “apoio” ao elenco e não possuem papéis essenciais. 

“É importante trazer protagonismo negro, feminino e LGBT’s, porque percebemos que essas pessoas estão sempre na margem e são sempre a menor parte da equipe ou da história do filme”, exemplifica. Para Ramos, muitos destes personagens não têm uma história bem desenvolvida no roteiro e ficam em segundo plano. “Os LGBT’s, por exemplo, serviam de apoio, nas novelas brasileiras, como elemento cômico ou aquele personagem que fica a parte, que não possui um afeto e nem uma vida pessoal. Serve basicamente para gerar humor ou algo marginalizado, de segundo plano, que pode ser facilmente excluído”. 

Contudo, há uma renovação nas produções atuais que dão maior esperança. Ramos afirma que a situação vem sofrendo alterações e as minorias possuem mais funções essenciais dentro das tramas cinematográficas. “Estamos vendo filmes e séries de grandes plataformas de streamings com protagonistas e personagens importantes LGBTQIA+, negros e também mulheres”, comenta. 

Porém, o realizador acredita que essa representação ainda não é a ideal. “É tudo de uma maneira complicada e problemática que ainda precisa ser muito desenvolvida”, completa.

MACHISMO

Nos últimos anos, escândalos e denúncias de assédio sexual fizeram parte do cotidiano da indústria cinematográfica ao redor do mundo, principalmente em Hollywood. Para Michel, mesmo em produções independentes, o machismo ainda persiste, mesmo que ocasionalmente. “A minha experiência de cinema é 100%

independente, portanto, a equipe acaba sendo mais múltipla e conseguimos escolher as pessoas com quem a gente trabalha. O que eu acho que ainda existe muito, certamente, é o preconceito contra as mulheres no set. Elas têm dificuldades de conseguir papéis de liderança, como direção de fotografia e de arte ou até mesmo a direção em si e o roteiro. Isso tem melhorado, mas ainda temos muitos problemas em trazer o protagonismo feminino para dentro do set”, completa. 

Outra questão relacionada ao machismo nos sets de filmagens é o assédio sexual. “Obviamente vemos isso acontecer, inclusive, em sets independentes. Mas é uma caminhada. Hoje, existe um cuidado um pouco maior dentro do set do que anos atrás”, relata.

MERCADO DE TRABALHO

O mercado cinematográfico, historicamente, é complicado para as minorias sociais. As grandes produtoras e distribuidoras até hoje empregam insuficientemente os LGBT’s, as mulheres e os negros. Durante a conversa com o ‘Foca no Peixe’, Michel foi questionado sobre o mercado de trabalho e as oportunidades para as minorias no cinema. “Todas as minorias sempre tiveram muita dificuldade de acessar o cinema. Hoje, ainda enfrentamos muitos desafios para conseguir entrar no mercado de trabalho. O cinema é um mercado muito restrito e liderado majoritariamente por homens brancos cis, principalmente héterossexuais”, explica. 

Apesar das dificuldades, Ramos conta que há uma mudança neste cenário através de festivais, editais e programas culturais que incentivam e apoiam as minorias no ramo cinematográfico. “Em Belo Horizonte, por exemplo, temos o edital ‘BH nas Telas’, que de alguma forma prioriza a pluralidade das pessoas nas equipes”, completa. 

Segundo Michel, o cinema é um mercado de trabalho que gera muito dinheiro, porém, é necessário descentralizar a renda. “Não adianta termos só vontade. Precisamos de receita. Não podemos viver só nessa ideia de fazer arte pela arte. Precisamos espalhar o financeiro para que tenhamos, cada vez mais, equipes plurais com temas diversos. Cinema é uma arte cara que possui muita gente envolvida. Logo, há essa necessidade de ter dinheiro”.

PRESENTE E FUTURO

Em relação ao presente e ao futuro do audiovisual LGBTQIA + independente no Brasil e no mundo, Michel se mostrou esperançoso: “O cinema já sobreviveu a duas guerras mundiais e a diversos problemas sociais, além de tudo que aconteceu no século passado. O cinema vai continuar vivo e acontecendo de alguma maneira”.

Além da sobrevivência da arte, o pesquisador pontua uma evolução e como as produções e temáticas atuais podem determinar como será o futuro do cinema. “Certamente vemos uma evolução acontecendo, ainda que a passos lentos. Hoje, ouvimos mais falar sobre diretoras mulheres e diretores negros sendo premiados. Começamos a perceber uma mudança”, comenta. 

Ramos cita vários exemplos de filmes realizados por pessoas pertencentes às minorias sociais que foram premiados em importantes festivais ao redor do mundo recentemente. Como a vitória de Chloé Zhao, no Oscar de 2021, na categoria de melhor direção. Sendo apenas a segunda mulher a receber o prêmio nesta categoria em 93 anos de academia. Além da vitória de ‘Moonlight’, na categoria de melhor filme no Oscar de 2017, que aborda a história de um homem negro homossexual. Por fim, o realizador menciona o filme ‘Luca’, lançado em 2021. Para ele, a produção é cheia de metáforas sobre “sair do armário”, além de aprender a apoiar e respeitar as pluralidades do mundo. 

Correlacionado ao cinema atual e ao cinema das décadas de 1940 e 1950, Michel cita o “Código Hays”, presente principalmente na ‘Era de Ouro de Hollywood’. Uma espécie de regulamento que proibia qualquer obra que não fosse de acordo com os valores morais cristãos ocidentais. Eram proibidos filmes que continham nudez, insinuação de nudez, de consumo de drogas, de miscigenação de raças, adultério, promiscuidade e o comportamento homossexual. “O mercado está mais movimentado neste sentido e, sem dúvidas, teve uma evolução neste século. Estamos caminhando e não podemos perder a esperança, mesmo que, neste momento, vivenciamos um governo contra a cultura e a arte. Particularmente, tenho a esperança de que teremos uma reviravolta nos próximos anos”, conclui.

TEMPORAL

Realizado no tempo de faculdade, Michel co-dirigiu com Maíra Campos, o filme independente ‘Temporal’. O enredo aborda a “relação de invisibilidade entre pessoas do mesmo sexo e fala sobre memória e lembranças de afeto de duas mulheres”, completa. 

‘Temporal’ foi exibido pelos festivais Transforma, em Santa Catarina; Bogoshorts, na Colômbia; Festival de Vitória, além de ser selecionado para o Rio Festival de Cinema LGBTQIA +, que ocorrerá entre os dias 8 e 18 de julho. O curta também venceu o prêmio de Melhor Fotografia no Festival de Cinema do Centro Universitário Una. 

Após a circulação em festivais nacionais e internacionais, em breve, ‘Temporal’ estará na Cardume Curtas. Comemorem peixinhos!

EU ESTOU VIVO

Além de ‘Temporal’, Ramos também dirigiu o curta LGBTQIA+ “Eu Estou Vivo”, em parceria com Maíra Campos. O enredo aborda a história de Ivo, um homem condenado que vive em uma prisão com outros homens. Eles são proibidos de se relacionarem ou se comunicarem, o que os levou a desenvolverem uma linguagem não verbal. 

Então, Ivo e outros homens se comunicam em silêncio para uma fuga furtiva, com o intuito de experimentar sensações há muito esquecidas e fugir de uma ameaça que ele não sabe de onde vem. 

“Eu Estou Vivo” está disponível na Cardume Curtas. Corre aqui! https://cardume.tv.br/movie/eu-estou-vivo/

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