#Dicas – Artigo – Tecnologias de gênero, de Teresa de Lauretis
por Juliana Gusman
Nos movimentos feministas que despontaram nos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970, privilegiava-se um discurso de afirmação da diferença sexual. A luta socialista por igualdade deixava de ocupar o protagonismo no horizonte dos embates políticos para se defender, positivamente, as agruras específicas que acometiam sujeitos inscritos na categoria “mulher”. A partir dos anos 1980 e 1990, emergem, entretanto, movimentos de contestação que iriam tecer uma crítica radical ao sujeito, na verdade, apoucado desses feminismos – majoritariamente branco, burguês, cisheteronormativo. Perspectivas teóricas dissidentes surgem a partir da denúncia, por parte de sujeitos subalternizados, dos processos de normatização constrangedores do feminismo liberal.
A ruptura com o movimento feminista identitário seria encarnada, principalmente, por teóricas e teóricos estadunidenses que mantinham estreito diálogo com o pós-estruturalismo francês, especialmente com as obras de Michel Foucault, Jacques Derrida e Gilles Deleuze. Reivindicando um movimento queer, figuras como Donna Haraway, Judith Butler, Jack Halberstam, Sam Bourcier, Paul B. Preciado, Gloria Anzaldúa, além de feministas negras como Barbara Smith e Audre Lorde, se propuseram a contestar a feminilidade branca, colonial, classista e dessexualizada que vinha respaldando a política feminista até então. Entre elas, destaco a italiana Teresa de Lauretis, a primeira teórica a enunciar, com rebeldia, o termo.
Em verdade, o termo queer surge no inglês do século XVI para adjetivar o “estranho”, o “excêntrico” e o “peculiar”. A partir do século XIX, a palavra passa a ser utilizada como uma ofensa, como uma interpelação humilhante para menosprezar o sujeito a que se refere, geralmente homens e mulheres homossexuais. Queer é o estranho, o bizarro, o viado, a bicha, a sapatona, o afeminado. O insulto foi, no entanto, reapropriado pelas próprias vítimas de sua invocação e redirecionado com sua carga de estranheza e escárnio para designar uma postura de oposição e protesto, em prol de uma política interseccional contra opressões interligadas. No imaginário queer, o projeto feminista estaria menos ocupado com a libertação das mulheres do que com o desmantelamento de dispositivos políticos que produzem diferenças de classe, gênero, raça e sexualidade. Em outras palavras, a abordagem queer não se volta para a defesa de uma identidade particular de mulheres, homossexuais e outros marginalizados, mas para uma crítica às noções clássicas de sujeito e identidade, que muitas vezes expulsam determinados corpos de zonas de inteligibilidade, tornando-os abjetos, inumanos e desimportantes.
Ancorada na perspectiva queer, Teresa de Lauretis clama, em A tecnologia de gênero – publicado originalmente em 1987 como capítulo do livro Tecnologias de gênero – por um conceito de gênero desvinculado da noção de diferença sexual, encarando-o, a partir de Foucault, como produto de diferentes tecnologias sociais e sexuais. O gênero não seria, então, uma propriedade inerente aos corpos, mas um conjunto de efeitos que age sobre eles. Por isso, para De Lauretis, o gênero é uma construção e uma representação normativa, o que não significa, porém, que ele não tenha reverberações concretas. Obviamente, as tecnologias constitutivas do humano atuam diferentemente em sujeitos tidos como femininos ou masculinos, que serão atravessados de maneiras específicas nas práticas e nos discursos coletivos.
Para De Lauretis, o cinema é uma tecnologia de gênero fundamental no nosso tempo. Trata-se uma forma cultural capaz de reiterar manifestações legitimadas de identificação e subjetivação, interpelando-nos performativamente. Assim como outras instituições sociais, o cinema é capaz de controlar o campo do significado social e atuar na consolidação e na incorporação de normas de gênero tomadas, falsa e ideologicamente, como naturais. Não obstante, a autora reclama a necessidades de nos reapropriarmos, subversivamente, dessas tecnologias, criando espaços de discurso e de produção de corpos múltiplos, até mesmo inclassificáveis. A tecnologia de gênero é, portanto, uma contribuição fundamental para reflexionarmos sobre a potencialidade disruptiva e transformadora do cinema. O texto está integra a coletânea Pensamento feminista: conceitos fundamentais, organizado por Heloisa Buarque de Hollanda e publicado pela editora Bazar do Tempo. Uma tradução mais antiga também está disponível na Internet.