#Crítica – Laura Coggiola, diretora e roteirista do fotofilme A Sentença (2021), constrói uma peça audiovisual a partir de imagens fixas enquanto nos ocupa de espaços sonoros oníricos e belos. Uma mistura serena e trágica que articula a estrutura mitológica chinesa com o afeto urbano contemporâneo.
Por Gabriel Leal
Após sonhar com um dragão, a personagem principal e narradora acorda com uma sentença desse ser mítico: ele será assassinado por Ayume. A protagonista, então, se arruma e sai para encontrar sua amante, a quem o dragão se refere como sua futura assassina. As duas decidem fugir do caos urbano e da sentença premonitória, passando o dia juntas no parque Ibirapuera. Encontram refúgio no Museu de Arte Contemporânea e na natureza. Porém, o destino do dragão é inevitável e, ao final do dia, o ser onírico aparece morto na rua enquanto as duas o encaram entre o choque e a tristeza.
A obra é adaptada, segundo os créditos, de uma história de Wu Cheng’en, poeta e novelista chinês de meados da dinastia Ming (século XVI) conhecido por ser o autor de uma das maiores obras da literatura chinesa: Jornada ao Oeste. O tom contestador e inconformado da escrita de Cheng’en ressoa na obra de Coggiola, apesar do fotofilme ter uma aparente ternura. Trabalhando tematicamente o tradicional e o contemporâneo, A Sentença estabelece a partir do vínculo afetivo das duas mulheres a possibilidade de ressignificar esses elementos.
O dragão representado na literatura de Wu Cheng’en é considerado parte de um processo de transformação interna; em A Sentença, esta figura está relacionada à tradição chinesa e à identidade de Ayume. Essas tradições, em muitos casos, são conservadoras e patriarcais. A morte do dragão, dessa forma, pode significar o fim de um ciclo tradicional e a abertura para o novo. No último quadro do filme, o plano contra-plongée acentuado marca o poder dessas personagens diante da morte do dragão, ressaltando o arco de transformação. Nesse sentido, o filme estaria representando o processo de ressignificação cultural, no qual o moderno e o tradicional estão em atritos constantes. Essa tensão entre o novo e o velho se corporifica no próprio dragão e em sua sentença, que acompanha momentos-chave do filme através da montagem e da construção sonora.
O conflito temático é marcado pela direção de arte e fotografia. No sonho, ao início, o vestuário e a construção estética marcam um tempo afastado da modernidade. Quando deixamos o momento onírico inicial, na primeira parte do filme, temos uma sequência de imagens na casa da protagonista na qual a câmara analógica e outros diversos elementos de decoração seguem marcando um tempo deslocado da atualidade: como o rádio antigo, a porcelana e o telefone. Ao sair da casa, os elementos da modernidade são colocados de forma progressiva, começando com o plástico (se não fosse por esse material, poderíamos supor que essas imagens tivessem sido registradas da China Imperial). Em seguida, deparamo-nos com a cidade moderna em seu elemento mais característico: o trânsito de automóveis. Nesse momento, há um plano chave que nos ajuda a ler essa tensão entre o passado e o presente: a imagem da personagem no viaduto atravessando sozinha a cidade enquanto os carros seguem em linhas perpendiculares. Esse plano nos permite pensar que essas personagens não vão em oposição à modernidade, mas em direção ao intercruzamento entre o antigo e o contemporâneo, estando geralmente em uma posição elevada (no terraço do edifício ou em seu apartamento, por exemplo), possibilitando que elas observem e compreendam essa dicotomia.
A elevação é um motivo marcado em diferentes momentos, como na apresentação ao dragão e, em seguida, na personagem principal que flutua, imagem extraordinária que remete à inesquecível cena de O Sacrifício (Tarkovsky, 1986). O dragão ao morrer atravessa a dimensão onírica tocando o chão na dimensão terrena das personagens. Em contraposição, elas o veem de cima de sua torre, absorvendo dele seu caráter espiritual.
O formato de fotofilme é potencializado por uma proposta de direção de atores bressioniana, ou seja, que se refere a Robert Bresson, diretor francês que critica os atores por seu caráter teatral e que busca, então, a utilização de modelos. As modelos/atrizes no trabalho de Laura são precisas em estabelecer o significado marcado em cada plano e disso se intui uma triangulação do ponto de vista entre elas e o dragão. O dragão é uma figura misteriosa referenciada ao longo do filme por sons característicos, remetendo a uma sensação de perseguição. Porém, a sensação de que o dragão as está perseguindo é invertida quando o vemos morto como anunciado no sonho ao início. Essa dinâmica de “quem vê a quem” não termina de se desenvolver, pois o uso da imagem analógica parece estabelecer um código confuso quando há um salto de ponto de vista entre as duas personagens a um ponto de vista desconhecido (ver imagem seguinte). Esse ponto de vista indicado poderia ser o do dragão, mas isso não fica claro e parece não acrescentar uma camada de significado.
Em síntese, esta obra confronta várias camadas audiovisuais e narrativas do passado e do presente e encontra neste gesto seu maior logro, que é ter uma proposta estética fresca, conectada com a arte contemporânea e construída narrativamente por elementos clássicos e tradicionais. Essa imbricação reverbera símbolos poderosos e uma sensibilidade aguçada e generosa.