#Crítica – Como O Homem das Gavetas trata de suas ausências e desejos
Por Sarah Cafiero
Um homem descobre seus vazios ao se libertar do abraço de uma árvore. Essa parece ser a premissa do curta-metragem O homem das gavetas (2019), dirigido por Duda Rodrigues. A animação em stop motion se utiliza do formato de fábula para expor a sensação humana de vazio e nossas aflições e urgências em extingui-la. O filme metaforiza essa jornada através de um protagonista cujo corpo é composto de gavetas e que tenta preenchê-las ora com dinheiro, ora com comida, ora com sexo.
A alusão aos pecados capitais da tradição cristã é clara: avareza, gula e luxúria. Isso, aliado ao formato de fábula, cria a expectativa da lição de moral ao fim do filme, quando o personagem encontra seu caminho e se liberta dos vícios. Deixando os spoilers para o final, falaremos disso mais tarde. Por ora, nos atentemos à arte do curta, que merece destaque.
O protagonista abre os olhos, na primeira cena, para revelar sua prisão: um campo verde, coberto de flores num dia de céu pintado de azul. Assim que ele se liberta da árvore que o aprisiona, descobrimos que habita o Quarto em Arles, de Van Gogh; a vista da janela é A Noite Estrelada. Tal qual o pintor, porém, o Homem das Gavetas precisa enfrentar o vazio da sua existência. As gavetas abertas escancaram tal ausência e ele recorda, com um pouco de afeto e um tanto de raiva, o tempo que passou preso à árvore. Os belos cenários não comovem o protagonista e ele parte em busca daquilo que lhe falta.
Quando a jornada se inicia, somos transportados a um universo surrealista. De forma literal, o homem preenche suas gavetas com avidez insaciável, consumindo tudo o que deseja. Como já comentamos, o caráter de fábula da narrativa prenuncia seu fracasso em se satisfazer com prazeres mundanos. E a moral vem, mas de forma inesperada.
O desfecho do personagem não é trágico como o de Van Gogh, mas é triste. Ao se entregar outra vez ao abraço da árvore, ele parece renunciar ao mundo que conheceu, voltando a uma zona de conforto. A escolha remete mais uma vez às religiões cristãs: ele renega o conhecimento, a fonte do pecado original. O espectador que se identifica com o sentimento de vazio do protagonista pode se sentir satisfeito com o acolhimento que ele recebe. Por outro lado, também pode se sentir frustrado ao perceber que apesar de toda a experiência adquirida na jornada, o Homem das Gavetas retorna ao ponto inicial, comodamente inerte, fechando os olhos para o mundo que já não lhe diz respeito.