#Crítica – O blog de crítica da Cardume Curtas acompanhou a Mostra Foco, a competitiva de curtas de uma das principais janelas de exibição do cinema nacional contemporâneo.
Por Juliana Gusman
Impressões: Mostra Foco – Série 3
I.
A última série da Mostra Foco, de Tiradentes, manteve a tônica da contradição. Deparamo-nos, mais uma vez, com um conjunto heterogêneo de filmes que partem de diferentes contextos de produção e pressupostos estéticos para abordar conteúdos, à primeira vista, distantes. Afinal, é fácil mensurar o abismo que separaria a estrela de Eu fui assistente do Eduardo Coutinho e as transbruxas de Se eu tô aqui é por mistério. Mas o mago do documentário brasileiro também conjura encantamentos, assim como há algo de muito tangível na distopia queer de Clari Ribeiro: ameaças e resistências fantásticas também fazem parte do nosso mundo. O arremate da sessão foi justamente esse: o tom crescente da magia, expressa não só como tema, mas como forma.
II.
Em Retratos Fantasmas (2023), Kleber Mendonça Filho redubla um trecho do curta pernambucano Eisenstein (Leonardo Lacca, Raul Luna e Tião, 2006), no qual um personagem sussurra a outro: “os filmes de ficção são os melhores documentários”. No último longa de Kleber, a não-ficção recorre à matéria ficcional para se erigir: filmes como O som ao redor (2012) e Aquarius (2016) convertem-se em documentos e arquivos de uma história pessoal e social do cinema no Recife.
Allan Ribeiro, diretor de Eu fui assistente do Eduardo Coutinho, partilha, aparentemente, essa mesma crença na força indicial da imagem fabulada, e retoma seu trabalho anterior – sobretudo as ficções Boca a boca (2003) e Depois das nove (2008) – para relatar e reconstruir o dia em que alcançou a almejada posição expressada no título. No primeiro curta, já manifestava sua admiração pelo realizador, projetada em um transeunte que dizia a um repórter: “meu sonho foi sempre aparecer num filme do Eduardo Coutinho. Isso é um documentário do Eduardo Coutinho?”. No jogo entre registros e campos cinematográficos agora proposto, pouco importa se a conquista do cargo é real: como aventou Alessandra, a garota de programa de Edifício Master (2002), há mentiras bastante verdadeiras.
Eu fui assistente de Eduardo Coutinho é uma bonita homenagem ao documentarista, mas também a sua obra. Com um uso inteligente e bem-humorado da narração em off em primeira pessoa e de uma montagem ensaística e reflexiva que revisita, arqueologicamente, pérolas de sua própria filmografia, Allan Ribeiro consegue acenar às preocupações de linguagem coutinianas sem abrir mão do seu registro autoral. Eis a mágica: este é e não é um documentário de Eduardo Coutinho.
III.
Viventes, de Fabrício Basílio, aumenta o volume da fantasmagoria. Os dilemas de Paulinho, o protagonista, são bem concretos: desempregado, precisa imprimir o currículo para tentar uma nova sorte. Mas a ajuda vem de lugares nada ordinários: a avó, mesmo morta, continua a amparar os apuros do neto. Não falamos de um filme sustentado por uma estrutura narrativa linear e plenamente coesa: ao diretor, parece interessar mais as possibilidades de representação visual de um imaginário onírico. Nesse sentido, é um antecessor adequado a Seu eu tô aqui é por mistério, de Clari Ribeiro, um curta que também recorre predominantemente à experimentação pictórica para lançar os seus feitiços.
IV.
Em um Rio de Janeiro futurista, Dahlia busca fundar o Clã mais poderoso que já existiu para derrotar a Ordem da Verdade, que persegue e elimina pessoas trans. Se eu tô por aqui é por mistério consegue tecer denúncias sem reiterar violências: assassinatos que encontram um lastro tão firme em nosso país são representados sob o verniz da paródia. Aludindo à tradição do cinema de horror, Clari Ribeiro amplifica a artificialidade da morte e, com isso, ergue uma fronteira ética entre espectadores e a brutalidade vista na tela. O fantasioso é ético, e ao mesmo tempo que nos compadecemos com as mocinhas indefesas que tentam, sem nenhuma habilidade, escapar do seu algoz, revisitamos criticamente o nosso próprio repertório fílmico, repleto de ideias absurdas da fragilidade feminina alimentadas por imagens como essas que, nos seus usos dominantes, se levam a sério.
Dahlia precisa localizar a líder suprema, desaparecida, para descobrir o seu próprio caminho. Essa costura narrativa, como já sugerido, não é tão bem urdida, mas o filme parece querer engendrar contra-discursos por outras vias. A performance está a serviço da performatividade – em outras palavras, tentando aterrar a teoria de Judith Butler, a qualidade expressiva e artística de um corpo em cena (principalmente da magnética protagonista Aretha Sadick) é de onde brotam as asserções sobre formas outras de viver e transgredir os gêneros. A iluminação neon e o apurado trabalho de fotografia dilatam e potencializam essas experiências de desvio biopolítico.
O curta me fez pensar sobre as recentes reivindicações em torno da palavra “bruxa”. A literatura sobre o tema privilegia suas associações com a história do extermínio sistemático de mulheres cisgêneras e europeias, queimadas vivas a partir do século XVI por afrontarem expectativas em torno de seu papel procriativo, necessário ao acúmulo do capital. Talvez o deslocamento visual ensaiado por Clari Ribeiro e suas bruxas e bruxos queer do Sul Global sugiram não apenas a necessidade de revisitar o passado e revirar as cinzas das fogueiras para entendermos dimensões eclipsadas de um genocídio sustentado na repulsa e no controle de uma ideia específica da feminilidade, mas a validade dessa alcunha monstruosa e provocativa para nossas lutas do presente: quem deve integrar as trincheiras dessa batalha? Uma pequena extrapolação, que me parece justa.
Zezé Motta e Helena Ignez integram um poderoso elenco saudando as novas gerações de artistes como Lorre Mota e Bruna Linzmeyer, um (comedido) gracejo cinéfilo a duas grandes musas da nossa cultura audiovisual.
V.
A Mostra Foco chegou ao fim com a explosão criativa do Coletivo Pisquinhos, que assina o filme Onde Judas Roubou as Botas. Jovens com idade entre 15 e 23 anos assumiram o caos como o norte de uma direção coletiva em um documentário incomum. As folias que marcam a festa do Boi Balaio, realizada há mais de cinco décadas na cidade de Hematita, em Minas Gerais, durante os sábados de aleluia, impõem ritmo à obra, da filmagem à montagem. O ápice da diversão, a malhação de Judas, já retratada no cinema brasileiro por ninguém menos que Adélia Sampaio em Adulto não brinca (1980) – cujos excertos, que temperam o filme dos Pisquinhos, confirmam que não se almeja reverenciar apenas a cultura popular. O encontro entre um conhecimento fílmico bem fundamentado e a irreverência juvenil produz imagens singulares e instigantes, que vão se sobrepondo em camadas e camadas de metalinguagem. O curta se volta para ele mesmo, ampliando seu fora de campo vertiginosa e freneticamente: Onde Judas Roubou as Botas também documenta o seu próprio fazer.
Quando Judas queima, a plateia, absolutamente contaminada, vai à loucura.
No dia 27 de janeiro, foram anunciados os vencedores da 27ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes. Eu fui assistente de Eduardo Coutinho, de Allan Ribeiro, recebeu o Prêmio do Júri na Mostra Foco e o Prêmio do Canal Brasil. Kerexu Martim, diretora de Aguyjevete Avaxi’i, recebeu o prêmio Helena Ignez de Destaque Feminino.