#Crítica – Documentário de Dênia Cruz relata a luta por moradia da ocupação Leningrado, em Natal (RN).
Por Juliana Gusman
No documentário Leningrado, Linha 41 (2017, 20’), de Dênia Cruz, uma voz over em russo relata os principais acontecimentos do cerco à cidade de Leningrado, na União Soviética, iniciado em 8 de setembro de 1941. As tropas da Alemanha Nazista mantiveram o território sob violência e vigilância durante demorados 872 dias. O isolamento provocou a morte, de fome e de frio, de pelo menos 1,5 milhão de pessoas. No mesmo idioma, o narrador evoca outro cerco, ocorrido 60 anos depois da tão adiada libertação da São Petersburgo atual. Fala de um confronto nos trópicos, na aridez da capital potiguar. A língua truncada, a princípio, parece inadequada para lidar com as lutas por moradia dos batalhadores e batalhadoras do Brasil.
Na madrugada de 9 de abril de 2004, três ônibus e dois caminhões transportaram 120 famílias de Natal engajadas na disputa pelo direito à terra. Feita a ocupação, logo tiveram que mobilizar resistências. “Era uma guerra e eu me preparei como um soldado que queria lutar para conquistar a moradia, tanto para mim quanto para as pessoas que eu via em um estado de miséria, degradados, na pobreza, sem ter onde morar”, diz Luiz, um dos combatentes. Veio a vitória, junto com novos enfrentamentos. À ocupação, deu-se o nome de Leningrado. Descobre-se que, afinal, a narração em russo não é mero capricho dos realizadores, mas uma forma de manter, cinematograficamente, o vínculo entre duas experiências históricas aparentemente distantes, mas ligadas pelo desejo dos pequenos grandes revolucionários nacionais de manter viva a máxima marxiana: trabalhadores do mundo, uni-vos! Reivindicam uma solidariedade de classe que transpõe espaços e temporalidades. O Movimento de Luta dos Bairros (MLB) e o Movimento dos Sem Terra (MST): o exército vermelho tupiniquim.
Podemos apontar outras semelhanças não necessariamente enunciadas na obra. Assim como ocorreu na Revolução de 1917, que levou à ascensão o Partido Bolchevique, as mulheres da Leningrado do Rio Grande do Norte também estão na linha de frente da batalha. A companheira Valdete é frequentemente mencionada como a grande liderança da ocupação. Seu sobrenome não poderia lhe servir melhor: Guerra. Mas como movimento social não se faz sozinho, o documentário nos apresenta a diferentes personagens que, coletivamente, travaram antagonismos com as sempre incansáveis tentativas de reapropriação. Aos depoimentos – estratégicos para imprimir o retrato de uma comunidade – somam-se registros do cotidiano da ocupação e imagens de arquivo das suas primeiras construções, fundamentais para podermos ler a história à contrapelo, recontando-a a partir do ponto de vista do povo. Aqueles e aquelas a quem sempre se negou o acesso aos meios de produção de discurso sabem da importância de se documentar um passado de embate, já que nem os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. Além de lutar pela moradia, têm que lutar contra esquecimentos.
São bonitas as imagens panorâmicas que entrecortam a narrativa. Elas parecem valorizar a importância do território conquistado. Na verdade, o drone acompanha um ônibus da Linha 41A, que passou a circular a partir de agosto de 2014. Dez anos depois do cerco à Leningrado brasileira, os moradores finalmente adquiriram o direito de ir e vir. Ainda precisam buscar o direto à educação, à saúde e o reconhecimento do conjunto habitacional como bairro. Tecnicamente, “o Leningrado não existe”, explica Wilza Cruz. Apesar das adversidades implicadas nessa inexistência, é possível acionar outros sentidos para ela. Lembremos que utopia significa, justamente, um “não lugar”. Leningrado não existe porque sintetiza um desejo de transformação social que ainda não tem espaço em um mundo espoliado pela dura exploração capitalista. Leningrado não existe porque é uma brecha de esperança e uma janela de um futuro porvir. Leningrado não existe, mas dá concretude aos nossos sonhos por emancipação radical.
Em um Brasil que demoniza movimentos pelo direito à moradia, Leningrado Linha 41 honra as melhores tradições do cinema documentário, um campo eminentemente político e afeito às disputas por sentido. Não por acaso, foi na própria União Soviética, com o trabalho de figuras como Dziga Vertov (1896-1954) e Esfir Shub (1894-1959), que ele pôde florescer. Ao final, nada faz mais sentido do que uma voz over em russo para narrar a rebeldia da nossa gente destemida. A revolução está aqui.
O filme está disponível na plataforma Cardume Curtas e consta como um dos destaques da curadoria.