Piracema em Tiradentes, parte 1: Reescrevendo a história do Brasil

#Crítica – O blog de crítica da Cardume Curtas acompanhou a Mostra Foco, a competitiva de curtas de uma das principais janelas de exibição do cinema nacional contemporâneo.

Por Juliana Gusman

Se a Mostra de Cinema de Tiradentes marca o início do calendário do audiovisual brasileiro, não há melhor oportunidade para inaugurar, também, a retomada do blog Piracema, o braço de crítica da Cardume. Dedicado a pensar a nossa produção independente e artesanal, sobretudo na esfera do curta e média-metragem, o Piracema está de volta em 2024, e ganha fôlego para novos mergulhos com essa primeira imersão em um dos festivais mais importantes do país.

Nos próximos dias, acompanharemos os destaques da Mostra Foco, que apresenta um conjunto de 13 curtas que, segundo a curadoria composta por Camila Vieira, Leonardo Amaral, Lorenna Rocha, Mariana Queen Nwabasili e Pedro Guimarães, trazem “fortes marcas de invenção e singularidade” e “arriscam-se a lançar perguntas sobre questões políticas, socioculturais e históricas que atravessam o Brasil”. O gesto curatorial aposta no tensionamento entre obras capazes de reinventar (ou, no mínimo, de nos fazer reimaginar) tendências da filmografia nacional contemporânea. 

Impressões: Mostra Foco – Série 1

I.

Podemos dizer que os quatro filmes que integram a Série 1 da Mostra Foco reivindicam, em suas abordagens formais radicalmente distintas, o corpo a corpo visceral com a memória coletiva. São obras que revisitam passados e recolhem esquecimentos para reescrever o presente, e nunca sem provocar desconfortos. O Brasil permanece incômodo e áspero em suas necessárias releituras.

II.

O Cavalo de Pedro, de Daniel Nolasco, maneja a câmera para escavar vestígios de uma outra História no quadro Independência ou morte (1888), de Pedro Américo, o motor do argumento do filme (que, mesmo não sendo um dispositivo necessariamente novo, funciona bem aos propósitos narrativos estabelecidos). Perscrutando as bordas da imagem, o diretor encontra rastros de uma biografia não oficial da burlesca e bufona monarquia do Brasil. Para traçar contra-discursos, o curta aposta no deboche e na ironia, tanto no plano verbal – na narração em off e nos diálogos – quanto no plano visual – sobretudo nas cenas que, ao retratar um país oitocentista, não só não escondem, mas fazem questão de expor as gambiarras e os improvisos desse esforço de reconstituição a contrapelo. O ápice do escracho, a foda de Dom Pedro I e um homem negro, figura minorizada nas representações pictóricas da glória real, em cima da bandeira do Império. 

Dois pontos altos: a voz over da atriz Renata Carvalho, que reivindica ao corpo transviado o poder das enunciações (pretensamente) universais, e o espelhamento dialético entre o fogo que engole, destrutivamente, o Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, e aquele que, também destrutivo, consome a bandeira gozada e suja de uma realeza hipócrita. Nem toda violência é indesejável.  

Cabe ponderar se, ao figurar a objetificação do corpo negro por parte de Dom Pedro, o filme não estaria reiterando lugares sociais acimentados. Ou se, ao reivindicar o sexo entre homens como o mote da desconstrução de honrosas reputações, ele não estaria revalidando aquilo que consideramos tabu. De qualquer forma, aposta-se na força da chacota para deslocar, se não as imagens, o nosso olhar sobre elas. 

Por fim, é cômico que a troça se complete quando descobrimos que O Cavalo de Pedro foi financiado por um edital comemorativo do bicentenário do 7 de setembro. Independência ou petite mort.

III.

Aguyjevete Avaxi’i, de Kerexu Martim, desencadeia um outro ritmo à sessão, dos tempos largos. A jovem cineasta volta sua câmera atenta e demorada às mulheres e meninas que plantam e cantam o milho tradicional do povo Guarani M’bya na aldeia Kalipety. O território uma vez carcomido e desgastado pela cultura de eucalipto recobre sua mágica, multiplicando formas e cores inimagináveis aos cultivos não indígenas. O trabalho de som, sobretudo testemunhado em tela grande, amplifica texturas e atiça outras sensibilidades: a lida com o milho é ritual e sensorial, e somos convocadas, como espectadoras, a ecoar (re)encantamentos. Caso não compreendamos alguma parte da magia, o tempo espiralar do filme nos conduz aos entendimentos essenciais. Apostando na beleza, Aguyjevete Avaxi’i eleva, com os poderes da terra e do próprio cinema, alimentos de corpo e espírito.

É interessante notar – e essa foi uma questão levantada nos debates públicos  sobre a obra – que uma das crianças que participam do plantio é uma menina indígena branca. Há de se lidar com as contradições das nossas ancestralidades para entender e acolher o Brasil.

IV.

Eu não nasci para isso, de Erik Ely, instaura um terceiro compasso à primeira série da Mostra Foco. Assim como O Cavalo de Pedro, esse curta retoma episódios nada edificantes da história do Brasil. A Guerra do Paraguai é remixada com o militarismo contemporâneo, que explora o trabalho e a vida de homens racializados e empobrecidos. O uso do videogame, que ancora os depoimentos de jovens negros alistados, materializa violências erguendo uma camada ética a esse tipo de figuração. Essa forma cultural capaz de formar e informar masculinidades e virilidades dominantes consegue, subversivamente, acessar brutalidades com um certo distanciamento imagético, evitando a retomada de clássicas e racistas iconografias do sofrimento, tão comuns no nosso cinema. As cenas mais performáticas e teatralizadas, entretanto, invocam, paradoxalmente, esse regime de visibilidade – como aquela em que um rapaz tenta se desvencilhar de um plástico que o aprisiona. O final do filme sugere conformidades: a personagem performática retoma a lida alienadora com os jogos de guerra, que acabam perdendo seu caráter provocativo e político-estético no desfecho.

Na conversa sobre Eu não nasci para isso, a equipe curatorial revelou que houve alterações entre o corte selecionado e aquele que foi, de fato, exibido para o público durante o festival, frustrando os anseios das apostas de encadeamento entre um filme e outro. Aparentemente, a conclusão do curta foi uma das mais destacadas mudanças. O tom de resignação deixado pela obra em sua versão final contaminou, pelo menos em minha leitura particular desse agrupamento de filmes, a fruição do último curta a integrar a sessão.

V.

De Tomás Tancredi, Garimpando Garimpeiros, como explicita o título, extrai das sórdidas entranhas das redes sociais imagens produzidas por garimpeiros no cume do Brasil, em Roraima. O curta aposta na fricção da montagem, que dispõe imagens verticalizadas, captadas de celulares, em trípticos, para acender a fagulha da crítica. Trata-se de um trabalho ambíguo: conseguiria o argumento da edição se sobrepor às intenções exibicionistas e reacionárias das filmagens, francamente opostos? Em um público como o da Mostra de Tiradentes, certamente é possível garantir o tipo de engajamento ao qual o filme aspira. Entre outros públicos, mais amplos e heterogêneos, não há como controlar recepcionamentos. O louvor bolsonarista de Zézinho Garimpeiro pode, quiçá, despertar simpatias.

É verdade que o diretor afirmou que não pretende fazer o filme circular em circuitos mais expandidos. Tiradentes, para ele, é o máximo de exposição que sua experimentação documental busca. Porém, se o que se intenta, com a obra, é tecer algum tipo de denúncia, o que justifica a existência de um filme que pretende se dirigir a poucos, já convencidos, em sua maioria, das atrocidades vistas em telas? 

A Mostra de Cinema Tiradentes acontece entre os dias 19 e 27 de janeiro de 2024. Continue acompanhando a cobertura do Piracema.

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