#Crítica – A obra exalta a persistência e a resiliência dos artistas
Por Juliana Gusman
O nome parece dizer tudo. Ressignificasa, espetáculo em videodança dirigido e roteirizado por Raíza Costa e Célia Tadeu, pretende questionar se um corpo preso pode, ainda, se mover. O contexto, tragicamente inarredável, é a vigente pandemia de Covid-19; cinco bailarinas – Carolina Vieira, Luciana Damasceno e Nathalia Cunha, que se somam a Costa e Tadeu – tentam transformar o confinamento individual em potência criativa comum. No fim do mundo, insistem casmurra e bonitamente em se adaptar. Entretanto, não há resignações, mas o desejo persistente de fazer arte apesar das adversidades. Ressignificasa, que contou com apoio da Lei Aldir Blanc, estreou no dia 25 de junho na plataforma Cardume Curtas, inscrevendo-se numa tradição instituída, nos anos 1970, a partir do encontro entre a dança e o audiovisual – outra ressignificação vigorosa no cenário de isolamento.
Na obra, contemplamos as cinco mulheres, sucessivamente, nas suas tentativas de lidar com percalços espaciais. Carolina Vieira, restrita à geometria do seu chuveiro, dança, de forma contida e aparentemente sufocada, com a água. O vidro se embaça lentamente, proporcionando uma transição suave e delicada – o filme é cheio delas – para a imagem também indiscernível, estourada pela luz, da sala de Nathalia Cunha. Em ambiente semelhante performa Célia Tadeu, que tenta vencer a imobilidade ensejada pelo sofá. Raíza Costa, por sua vez, está atada ao chão, achatada pela fotografia – arrebatadora – que lhe enquadra do teto. Diante de tamanhas agruras, é possível pôr-se de pé? Por fim, Luciana Damasceno parece encarnar, no seu jardim, esboços de liberdade, embora o máximo que consiga fazer é tornar-se corpo-trepadeira, emaranhando-se do lado de cá de um muro que ainda a separa do velho normal.
Há uma certa autonomia na elaboração da movimentação de cada bailarina, embora seja possível pontuar consonâncias, como a exploração da circularidade dos braços, a continuidade e constância dos gestos, a potência minimalista das mãos e o jogo com os limites do ambiente cênico e do próprio quadro cinematográfico. Essas balizas visuais, tão incontornáveis quanto as sanitárias, são habilmente utilizadas pela montagem quando as artistas, finalmente, dançam juntas, compartilhando artificialmente a diegese da cena e uma partitura coreográfica, enfim, coletiva.
Se durante muito tempo as mulheres foram encadeadas no espaço privado do lar, Ressignificasa torna o doméstico público, dramático, teatral e, ressoando ecos do movimento feminista, político. No espetáculo, a poesia divide teto com a denúncia. A angústia do aprisionamento – alongado pelos descasos e crimes de um desgoverno genocida – é materializada na fusão entre os corpos dançantes e os cômodos tornados palco. A paleta de cores e os figurinos, especialmente, contribuem com o embaralhamento dessas fronteiras. Cabe dizer que, apesar da beleza plástica desse amalgamento, não há nada de pacífico numa consubstanciação coercitiva, inescapável. A arquitetura do som – primorosamente concebida por Anna Benchimol – também contribui com a reconstituição crítica da sensação de enclausuramento. Um barulho recorrente de relógio sublinha, por exemplo, a inquietude de um tempo que não passa jamais. Já o canto de pássaros e o trepidar de cachoeiras, cínicos e artificiais, nos fazem constatar, nas suas flexões diante da imagem caseira, que a esperança, assim como a água encanada, escoa pelo ralo. Ainda, é através da trilha que o real perfura qualquer elogio ingênuo ao lirismo, seja através dos anúncios de um carro de pamonha, que evocam o cotidiano banal, ou dos trechos de telejornais que nos lembram da nossa provisória derrota como país.
Porém, Ressignificasa se encerra otimista, com as artistas bailando diante de suas janelas, vitrines de um futuro porvir. Ao final, restam apenas espaços vazios – terão as mulheres conseguido se libertar? – alinhavados com o texto macio de Brisa Marques, cujo nome já sugere sua capacidade de nos fazer refletir sobre novos jeitos de respirar.
No debate realizado após a estreia do espetáculo, Carolina Vieira falou sobre a organicidade e a fluidez que assinalaram a criação da obra, já que as bailarinas estão juntas, na luta e na labuta, há muitos anos. Aliás, não há melhor nome para esse coletivo do que Trama, que celebra a inventividade da urdidura dos corpos. “A gente é praticamente quase uma”, afirmou a artista. Talvez, sugiro, elas sejam muitas, reverberando metonimicamente as aflições subjetivas de outras várias mulheres. De qualquer maneira, enlaçam neste tecido poético pelo menos uma, a mestra Pina Bausch (1940-2009), fazendo valer sua máxima: “Dancem, dancem, senão estaremos perdidos”.