#Crítica – O documentário animado de Cassandra Reis explora o imaginário das crianças a partir de suas doces e transformativas impressões sobre dinheiro, medo e gênero.
Por Juliana Gusman
Quando se embrenhava nas filmagens daquele que haveria de ser seu trabalho derradeiro, Últimas conversas (2015), Eduardo Coutinho expressava, continua e teimosamente, sua desesperança diante da tarefa imposta: entrevistar adolescentes, estudantes do ensino médio de escolas públicas do Rio de Janeiro. O documentarista morreu antes de concluir a obra injuriada, finalizada por João Moreira Salles e Jordana Berg. Ao final do processo, porém, Coutinho conversou com duas crianças para rascunhar a pulsão do seu desejo criativo; ambicionava explorar, em verdade, as discursividades da infância. Uma dessas entrevistas, protagonizada por Luíza – pequena, porém notável – foi incluída por Salles e Berg na versão final da obra, celebrando o filme confinado melancolicamente ao futuro do pretérito. Fato é que as intempéries para sua realização não seriam poucas e seriam, sobretudo, burocráticas. Organizar a documentação necessária para poder figurar a criançada é, de fato, bem laborioso. Anos depois, a realizadora Cassandra Reis, movida por um interesse similar ao do mestre do documentarismo brasileiro, encontraria na animação uma forma de contornar impedimentos.
Lé com Cré (2018) rendeu à Cassandra não apenas o bacharelado em Cinema, Rádio e Televisão pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo – a obra foi seu trabalho de conclusão de curso – como também o prêmio Carlos Saldanha de Melhor Curta de Estudante Brasileiro e de Melhor Curta Infantil no Festival Anima Mundi, em 2018. O filme foi condecorado, também, como Melhor Curta-metragem de Animação no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, em 2019, e chega, em março de 2021, ao catálogo da Cardume Curtas. Roteirizado em parceria com Mariana Lopes, o documentário animado apresenta reflexões de sete crianças sobre três temas: dinheiro, medo e coisas de menino e menina. Além de se configurar como solução para o imbróglio dos direitos de imagem, a animação, com sua aptidão para evocar imaginários, consegue acessar e materializar inventividades do mundo infantil.
As arestas do real ficam a cargo dos depoimentos, elevando-se as crianças a sujeitos do próprio discurso – um pequeno gesto revolucionário em uma sociedade tão adultocêntrica, desacostumada a levá-las a sério. Ainda, cada um dos entrevistados pôde escolher a personagem que os encarnaria nos modelos de resina em stop motion, elaborados por Reis e Gabriel Barreto. Barbara Rangel quis ser uma princesa ruiva; Caetano Aidar, um cachorro; João Pedro Reis – afiado – um adulto; Matheus Gonçalves pediu pra se tornar um elefante; Nicole Silva quis ser Dora, a Aventureira; Roger Mota, um artista; e Ysabelly Soares, a Cinderela. Outro gesto raro de estimular autodeterminações.
Primeiro, tentam explicar a natureza do dinheiro. “Pra mim dinheiro é uma nota que tem valor”, começa o menino-cão, sintetizando a literalidade que assinalará, ludicamente, as demais tentativas de definição. “Dinheiro parece um papel”, observa, na mesma toada, o menino-elefante. Tateantemente arriscam percepções sobre as dinâmicas de troca monetária. Com dinheiro “dá pra comprar um monte de coisas”, afirma Dora, a Aventureira: bala, salsicha, legumes, brinquedos, livros – “livro a gente não compra, a gente pega emprestado”, pondera o artista. Só que “quando você não tem dinheiro suficiente”, continua Dora, “não dá pra comprar”. A dureza da desigualdade social soa estranha, até mais amarga, quando enunciada por essa voz apequenada, que arremata: “Aqui em São Paulo quase ninguém tem”. “Tem gente que é pobre e não consegue achar emprego”, lamenta Cinderela. Precoces centelhas de indignação.
Quando discorrem sobre medo, logo defendem-se de possíveis e justificáveis covardias: “Todo mundo tem medo”, argumenta João Pedro, com toda a propriedade de quem reivindicou ser gente grande no cinema. E “de um monte de coisa”, acrescenta a princesa ruiva. Listam: monstro do lago, filmes de terror, escuro, rato, uma série de bichos raivosos – tartaruga, cachorro, gato – esqueleto, altura, andar de avião e de montanha russa. As crianças também têm medo de ficar sozinhas e de perder a família, sugerindo que nem todas as ameaças são tão fantasiosas. “Uma criança pode ter medo de um monstro e o adulto pode ter medo de perder essa criança”, compara o cachorro, demonstrando saber bem sobre receios amadurecidos. E “tem gente que fala que não tem medo de nada e depois tem um medo. Meu pai é um deles que tem medo de chorar”. A princesa ruiva, perspicaz, já identifica que o que mais amedronta homens são os arroubos da feminilidade. Chorar não é coisa de menina?
Ao refletir sobre essas distinções, algumas personagens reproduzem perspectivas heteronormativas de gênero e sexualidade, mesmo sem saber o que essas expressões compridas e aparentemente complicadas querem dizer. “Menino tem piu-piu e menina tem perereca”, crava o menino-cão; “Menina usa boneca e menino usa carro”, distingue o elefantinho; “Menino gosta de apostar corrida, de brincar de carrinho e as meninas gostam de brincar de Barbie e boneca”, complementa o artista. Como se antecipasse a verve feminista que talvez um dia haverá de ter, a princesa ruiva interdita os assomos dos papéis de gênero rígidos: “Não. Tem menino que brinca de carrinho e tem menino que brinca de boneca”. Dora, a Aventureira, também rejeita binarismos: “Tem o meu primo que brinca com as minhas coisas e eu brinco com as coisas dele”. A versão adulta de João Pedro, que mais uma vez incorpora a maturidade que sua personagem demanda, propõe a solução: “Que tal eles dividirem? Dá a boneca pro menino e dá o carrinho pra menina. Aí tudo vai tá bem. Tudo amigável por aqui”.
Claro que subverter expectativas de comportamento não é tão simples assim. “Se eu sair na rua com um laço na cabeça e um vestido rosa, o povo me zoa”, observa, indignado, o artista. “Os meninos vão me zoar, sério”, diz, descobrindo sem querer a genealogia do medo do choro. “Ah, tem alguns que acham ruim ficar falando que é gay”, explica melhor a Cinderela, que conclui: “Eles não tem que escolher o gosto das pessoas, só deles”. Nas falas de quem ainda está aprendendo a repetir as normas da “boa convivência”, que muitas vezes dependem de práticas coercitivas e, até mesmo, violentas para se afirmar, podemos perceber melhor as contradições da vida gendrada. As crianças conseguem oferecer um olhar distanciado, um pouco forasteiro, para nossas concepções de mundo mais sólidas. Lé com cré, que estimula a escuta dessas vozes quase sempre desimportantes, talvez nos ajude a pensar novas e futuras formulações, menos autoritárias. Quem sabe, se com a ajuda de sua princesa ruiva, o pai de Bárbara possa finalmente se render às lágrimas.