#Crítica – Colette (2020), A Love Song For Latasha (2019) e Dois Estranhos (2020) nos oferecem imagens de resistência.
Por Juliana Gusman
Para o filósofo Georges Didi-Huberman, as imagens têm vocação para permanecerem imperfeitas. Ao reflexionar, em Imagens apesar de tudo, sobre as fotografias arriscadamente produzidas por um judeu do Sonderkommando de Auschwitz, em agosto de 1944, o autor pondera sobre a importância de se preservar fragmentos, ainda que insuficientes, de um real impossível, que desafia ética e politicamente nossa capacidade de imaginação coletiva. Afinal, diante de uma catástrofe como a Shoah, resplandecem, ainda mais, as fissuras das nossas tentativas de representação, que ao mesmo tempo se afirmam indispensáveis como arcabouço da memória comum. Didi-Huberman, então, compreende as imagens como centelhas – nos termos de Walter Benjamin –, como fagulhas capazes de inflamar, mesmo diante de uma precariedade incontornável, o nosso presente com uma também impreterível força disruptiva.
“Se essas montanhas pudessem falar, eu acho que escutaríamos gritos”, diz Colette Marin-Catharine, na entrada de um túnel no campo de concentração de Mittelbau-Dora, em Nordhausen, talvez sintetizando essa quase impossibilidade – e necessidade – de se narrar e figurar algo como o Holocausto. A senhora altiva de 90 anos é o motivo do curta-documentário que leva seu nome, dirigido por Anthony Giacchino, um dos candidatos ao Oscar de 2021. Embora o filme recorra a imagens do passado, são nas visualidades do presente que insurgem, dilacerantes, as feridas incicatrizáveis de um corpo reminiscente, cujo flagelo maior e ainda latente foi a morte de um irmão sob os gritos inauditos das montanhas. Colette é um arquivo vivo.
Acompanhamos a nonagenária na sua arqueologia dolorosa e afetiva, almejando escavar os rastros da presença de Jean-Pierre Catharine no campo de concentração nazista, 74 anos depois de seu falecimento. Lucie, uma estudante de 17 anos, acompanha a senhora que, na própria juventude, havia servido à resistência francesa. Colette é um documentário observativo, mas a protagonista não hesita em interromper a autoridade às vezes incômoda da câmera, que a obedece. Deixou, porém, que a filmassem chorando, ela que sempre fora reconhecida pela firmeza inabalável. Diante das ruínas que evitou durante toda a sua vida, não suportou a ideia de ter esquecido de levar flores.
Na viagem a Nordhausen, Colette e Lucie carregam uma foto de Jean-Pierre, a qual exibem, portentosamente, ao final do filme. Elas parecem apostar, assim como Didi-Huberman, na força escassa e evocativa da imagem que resta.
A Love Song for Latasha, de Sophia Nahli Allison, também se depara com os embates da representação visual. O documentário, que concorre ao Oscar na mesma categoria que o curta de Giacchino, discorre sobre os infortúnios de uma menina negra na terra-símbolo da democracia ocidental, refém de outra política de morte – esta, porém, bem incorporada nos padrões civilizatórios dos Estados Unidos. Costuma-se (no caso, a branquidade) esquecer que o povo negro também foi – e é – exterminado. Latasha Harlins foi assassinada no dia 16 de março de 1991 com um tiro na nuca por Soon Ja Du, dona de uma mercearia que acusara a jovem de roubar um suco de laranja que custava US$ 1,75. Morreu aos 15 anos com uma nota de dois dólares na mão. O filme, como Colette, aposta no potencial lacunar do testemunho, recuperando as lembranças da prima e da melhor amiga de Latasha para reconstituir não apenas sua morte, mas principalmente sua vida. Na falta de imagens de arquivo, se reencena frações de sua existência. Também como Colette, A Love Song for Latasha se encerra com uma fotografia que tenta presentificar a trágica ausência de uma vida perdida.
(Para ler minha crítica completa de A Love Song for Latasha, acesse o blog Farofafá.)
Por fim, Dois Estranhos, de Travon Free e Martin Desmond Roe, é outra pequena obra de arte que participará dos Academy Awards deste ano. O filme também aborda o projeto racializado de aniquilamento do Estado norte-americano. Ficcional, não deixa de flertar com a política do documental que fundamenta as outras produções que destaco neste texto. Carter, interpretado por Joey Bada$$, é um homem negro que acorda todos os dias e é morto pelo mesmo policial, Merk, encarnado por Andrew Howard. A primeira violação, por exemplo, reconstitui o assassinato de George Floyd, em maio de 2020 – “I can’t breathe”, diz, alegórica e metonimicamente, a personagem múltiplas vezes dizimada.
No seu desfecho, ao invés de fotografias, Dois Estranhos reclama nomes de homens e mulheres vítimas da violência institucionalizada. Não obstante, com esse sopro do real, o curta junta-se a Colette e A Love Song for Latasha para afirmar a importância da memória e dos registros, exíguos e necessários, daqueles e daquelas que teimosamente sobrevivem nos vestígios das representações e nas imagens imperfeitas.
A Love Song for Latasha e Dois Estranhos estão disponíveis na Netflix. Colette está disponível no canal no YouTube do jornal The Guardian.