#Crítica – Os últimos românticos do mundo, Looping, Joãosinho da Goméa – o Rei do Candomblé e Em Reforma se aproximam ao esboçar desejos de transformação.
Por Juliana Gusman
“Em poucas horas o mundo será inteiramente destruído por uma nuvem rosa”. Os últimos românticos do mundo (2020), de Henrique Arruda, começa apocalipticamente, ainda que sem a carga funesta que sobrecarrega, hoje, as expectativas concretas de toda a humanidade. Na ficção, pelo menos, o fim dos tempos pode ser uma prerrogativa para o amor. Em novembro de 2050, Pedro (Carlos Eduardo Ferraz) e Miguel (Mateus Maia) decidem fugir para, juntos, enfrentar a morte certa e inarredável. O curta, outro fruto da fertilidade do cinema pernambucano, recentemente indicado ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2021, integra a Sessão Vitrine – Especial 10 anos. Ela acontece até o dia 28 de maio, na plataforma da Cardume Curtas.
Em Os últimos românticos do mundo, a desesperança diante de uma tragédia iminente é anuviada por uma nostalgia afável, acolhedora. A obra futurista de Arruda é arquitetada a partir da estética pré-tecnológica de videogames antigos, da estrutura fragmentada dos filmes da sessão da tarde e do glamour brega dos videoclipes, com direito a releituras antropofágicas. Reencena-se, por exemplo, Total Eclipse of the Heart, sucesso dos anos 1980 eternizado pela voz de Bonnie Tyler. Aliás, este fim do mundo low-tech é anunciado em broadcast: basta um radinho de pilha para acompanhar a aniquilação do planeta. A distopia retrô de Arruda, assim como a obra do seu conterrâneo Gabriel Mascaro, Divino Amor (2019), abusa dos tons de azul, lilás e rosa – esta, prenunciadora da catástrofe – para flexionar passado e futuro, propondo um presente-síntese ao mesmo tempo bonito e triste, prospectivo e desistente. Não há como sobreviver.
Os últimos românticos do mundo, entretanto, faz pensar se este mundo, de fato, não merece acabar. Sujeitos como Pedro e Miguel – meninos bichas, garotes trans e rainhas drags – são frequentemente violentados pelas normas heterocentradas que os expulsam do terreno da inteligibilidade. Como não cansa de nos alertar a filósofa Judith Butler, certos corpos, que desafiam uma coerência imposta entre sexo, gênero, sexualidade e desejo, são expelidos da coletividade e encarados como vidas excrementícias, que não deveriam importar. Não por acaso, a über diva Sharlenesse (Cindy Vina), em um despretensioso esforço de imaginação política, deseja que a próxima geração seja toda “de sapatão, de trava e de trans” – de hackers de gênero capazes de reiniciar o CIStema que insiste em se perpetuar.
Ao mesmo tempo, embora descartável, este mundo também parece digno da salvação. Apesar de tudo, foi possível elaborar, nas brechas da normatividade, os afetos queer e as paixões fora da norma. Pedro e Miguel se casam como ato último de resistência, mas não para reproduzir e performar rituais hegemônicos. Diante do fim, eles não conformam uma família, no seu apequenado sentido burguês, mas fundam uma rebelião. Não se tornam marido e esposa, marido e marido ou proprietário e objeto de posse. Pedro e Miguel, ao contrário, se convertem no proletariado transviado que lutará contra as animosidades que ainda restam no tempo funesto. Prometem ir juntos até depois do fim do mundo. Hão de se reencontrar na terra da nuvem rosa para reelaborar a humanidade com seu amor desviante, monstruoso, revolucionário. Registram seus restos e rastros no “caderno para os próximos habitantes do planeta”, para que os meninos apaixonados do futuro saibam que é possível existir.
Os últimos românticos do mundo não deixa de reverberar os outros três curtas que compõem a Sessão Vitrine. Looping, de Maick Hannder (2019), é uma espécie de diário audiovisual de um rapaz enamorado, que bem poderia ser uma carta de amor. Trata-se de um romance quase inacreditavelmente descomplicado, costurado pelo tesão nas coisas simples. A textura dos sons azeita a descontinuidade das imagens fotográficas, fragmentadas como as memórias que ficam de um dia bom. A partir das lacunas visuais, propõe-se outros enquadramentos do (homo)erótico, ainda pouco representados na nossa cultura cinematográfica. Já o documentário Joãosinho da Goméa – O Rei do Candomblé, de Janaína ReFem e Rodrigo Dutra (2019), afirma, em consonância, a potência de se redimensionar os significados de um corpo nas telas. Aqui, o corpo é arquivo vivo, arauto da tradição, lócus da lembrança. O corpo é uma forma de se modificar as dinâmicas do espaço público. O sacerdote, morto em 1971, é reencarnado pela arte de Átila Bezerra, cuja dança também é história. Por fim, Em reforma, de Diana Coelho (2019), narra a pequena grande jornada de Bianca (Rosane Santana) rumo à sua autonomia e autodeterminação. Motivada pela visita da filha, a protagonista se vê impelida a concluir a obra na sua laje. Para concretizar as mudanças que almeja, Bianca parece compreender a necessidade de contar, sobretudo, consigo mesma. Assim como Pedro e Miguel de Os últimos românticos do mundo, ela percebe que pode ser sujeito de sua própria redenção.
A Vitrine Filmes é uma distribuidora independente fundada em 2011. Foi responsável pelo lançamento de mais de 50 longas brasileiros – entre eles, o já icônico Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019) – e realiza a distribuição de filmes nacionais e coproduções internacionais. Na comemoração dos seus dez anos de atividade, a Vitrine lançou, além dos curtas comentados neste texto, exibidos pela Cardume, os longas Entre Nós, um Segredo, de Beatriz Seigner e Toumani Kouyaté; Chão, de Camila Freitas; A Torre, de Sérgio Borges; e Desvio, de Arthur Lins. Todas as obras podem se assistidas nos cinemas ou em plataformas como Now, Oi Play e Vivo Play, em uma parceria da Vitrine com o Canal Brasil.
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