#Crítica – Henrique Arruda lança o documentário Filhos da noite na Plataforma Cardume Curtas.
Por Juliana Gusman
Henrique Arruda já havia elogiado as bichas velhas. Primeiro, no filme Verde Limão (2018), cuja trama mnemônica orbita a performance derradeira de uma drag queen impulsionada a contemplar a própria capacidade de sobrevivência. Logo depois, esbarrou no tema em Os últimos românticos do mundo (2020), uma distopia que esboça o fim do planeta, na eminência de ser engolido e destruído por uma nuvem cor-de-rosa – mas só para que possamos reimaginá-lo em outros termos. Agora, o diretor pernambucano explicita engajamentos em Filhos da noite (2022), documentário que integra o projeto multimídia homônimo, cuja estreia acontece neste mês na Plataforma Cardume Curtas.
Como nas obras anteriores, Arruda aposta em uma narrativa lacunar, pouco inclinada a encerrar reflexionamentos. Se no site oficial do projeto é possível tracejar, com alguma precisão, as histórias de Salário, Gilberto, Malu, Saulo, Hilton, Américo, Fábio e Renildo, no filme preocupa-se menos com as demarcações identitárias. Embaralha-se depoimentos, até mesmo conflitantes, sobre o envelhecimento queer. Evita-se, assim, enquadrar as bichas velhas como um tipo social aplainado: trapaceando as mais adversas probabilidades, elas conseguem ser muitas.
Como Verde Limão e Os últimos românticos, Filhos da noite deseja se imiscuir nas esquinas da memória, reclamando, inclusive, a estética retrô da fotografia analógica e das fitas cassete, que evocam as texturas de outros tempos. Arruda também maneja sobreposições palimpsestícas para elaborar novas visualidades do passado. A montagem está a serviço das nossas sensibilidades, aguçadas menos pela literalidade e coerência entre imagem e som, do que pela combinação bonita e despretensiosa das diferentes matérias de expressão cinematográficas que logram evocar recordações. Busca-se recuperar, sobretudo, a aura insubordinada das boates gays, espaços sagrados das primeiras safadezas fora da norma.
Nas enunciações sobre o presente, sobressaem-se as preocupações com o corpo – ainda que inseguranças físicas não intimidem aparecimentos. A nudez, aqui, é política, além de artística. Afinal, estar velho é estar vivo, e não podemos esconder grandes vitórias. Os testemunhos verbalizam a consciência do triunfo, embora ele seja incapaz de aplacar completamente os receios inarredáveis sobre o futuro. “Eu não consigo me projetar daqui para a frente”, lamenta, pesaroso, um dos entrevistados. Não obstante, a capacidade de antever horizontes mais otimistas é a função própria de um cinema militante, vocacionado a transformar sociabilidades. Nesse sentido, Henrique Arruda anima, mais uma vez, nossas imaginações utópicas. Implicando-se na prosa e na luta, reitera que envelhecer é um direito, quando não, uma rebelião. As bichas velhas ainda têm muito o que fazer: têm tudo a conquistar.