#Crítica – Os curtas Infantaria, de Laís Santos Araújo, e As Miçangas, de Rafaela Camelo e Emanuel Lavor, levam o debate sobre aborto para a Berlinale.
Por Juliana Gusman
Texto publicado originalmente na Cine Ninja
O aborto é um tema difícil no Brasil. A maioria dos compatriotas ainda prefere tratá-lo como assunto de polícia, e não como urgência da saúde pública. Uma pesquisa recente da Datafolha revela que 32% da população é favorável à proibição total da prática – o que significaria enrijecer uma legislação já bastante endurecida, apoiada por 39% dos entrevistados. No país, só se interrompe legalmente as gestações indesejáveis precedidas por acontecimentos ainda mais martirizantes: estupro, risco de morte da mãe e anencefalia do feto.
Há pouca margem de escolha para as máquinas (re)produtoras de matéria-prima humana: desde que o Ocidente instituiu, por volta do século XVII, que destino das mulheres seria gerar e gerir trabalhadores afáveis e bem adaptados à exploração do capital, buscou-se incendiar autonomias. Fato é que antes das contrarrevoluções burguesas, as “bruxas” eram apenas pessoas livres. Ideologias alienadoras vão apagando os rastros dessa história e sedimentando opiniões inflexíveis, inibidoras de importantes discussões.
O aborto é, na verdade, um tema quase inadmissível no Brasil. Mas o que não pode um cinema também forjado pelas mais absurdas interdições? Apesar do consciente desmantelamento perpetrado pelo governo do ex-antipresidente Jair Bolsonaro contra o setor audiovisual nos últimos anos, por meio da extinção de diversos programas de fomento, parimos bons filmes. Filhos pródigos e quistos, As Miçangas, de Rafaela Camelo e Emanuel Lavor, e Infantaria, de Laís Santos Araújo, integram a programação do 21º Festival Internacional de Cinema de Berlim, levando a uma das mais importantes telas do mundo os nossos debates impossíveis.
No alagoano Infantaria, que integra a seção Generation 14plus da Berlinale, deparamo-nos com os anseios de dois irmãos: Joana (Ana Luiza Ferreira) quer tornar-se mulher; Eduardo (Francisco Nunes) quer tornar-se homem – e não há nada mais revelador daquilo que se espera de mulheres e homens do que inocentes alegorias infantis. Joana está sempre na lida com o espelho, tentando antecipar a puberdade da forma que pode. Empenha-se na construção, vaidosa, de uma versão mais crescida de si mesma. Eduardo aspira a ser como o pai policial – uma ausência tanto espectral quanto autoritária, que o garoto parece sempre (solitariamente) querer evocar. Suas feminilidades e masculinidades ainda cruas – bem sugestionadas pela minuciosa direção de arte de Lyara Cavalcanti – são colocadas à prova com a chegada inesperada, quase fantástica, de Verbena (Karolayne Raíssa), uma adolescente de 16 anos que atropela os preparativos da festa de aniversário de Joana para pedir ajuda a sua mãe, interpretada por Ane Oliva.
Nenhuma das crianças parece apreender inteiramente o que se passa com a jovem. A temperatura narrativa vai aumentando aos poucos, a medida que se maturam consciências. Joana reverencia Verbena como uma anunciação mágica da sua almejada adolescência – ainda que saiba pouco sobre os infortúnios que ela lhe guarda. Eduardo, por sua vez, amadurece suas já bem talhadas desconfianças patriarcais: se nem o lúdico esmalte vermelho na calcinha da irmã se esquiva de sua implacável vigilância, não haveria distrações suficientes para esconder um fato que poderia alçá-lo ao patamar de cabra-macho. Sua virilidade desabrocha com patrulhamentos, a despeito do conteúdo de sua inquirição. Na sua visão de mundo precocemente militarizada, não é possível ser mulher impunemente. A contravenção é atávica, e lhe cabe escavar desobediências certas.
Infantaria é um filme de sólidas performances, que não nos oferecem afagos. O olhar permanentemente triste de Karolayne Raíssa e a tensão de Ane Oliva são tão desoladores quanto a confiança ingênua da personagem habilidosamente vivida por Ana Luiza Ferreira. Francisco Nunes entrega um Eduardo implacável: não vislumbramos nenhuma possibilidade de reconciliação entre ele, a mãe, a irmã e Verbena. Infantaria opta pela via da denúncia, alertando-nos para a inevitabilidade dos antagonismos de gênero. As mulheres estão na mira até das armas de brinquedo.
O brasiliense As Miçangas, não obstante, prefere tecer acolhimentos. A obra vencedora do primeiro Edital Cardume para produção de curtas, que participa da mostra competitiva do festival (Berlinale Shorts), exercita necessários otimismos, lembrando-nos de que histórias instigadoras de imaginários políticos promissores são tão imprescindíveis quanto os discursos que apontam para nossas danosas contradições sociais.
Como em filmes anteriores de Rafaela Camelo – O Mistério da Carne (2019) e A arte de andar pelas ruas de Brasília (2011), disponíveis da plataforma da Cardume – As Miçangas eleva o afeto feminino. Se nos primeiros trabalhos da diretora apreendemos plenamente as facetas das ternuras emergentes – antes das próprias personagens – As Miçangas turva, para a audiência, a cumplicidade entre Pâmela (Pâmela Germâno) e Tícia (Tícia Ferraz), que se refugiam em uma casa remota, no meio do mato. Eventualmente, descobre-se a natureza desse vínculo, doce e corporal – falamos de um filme de diálogos econômicos, que se utiliza de outras linguagens para abordar companheirismos.
Aliás, outros sons, para além do verbo, complexificam a dramaticidade do curta. Servem para engrossar a textura da ambientação, evidentemente, mas também para assinalar apreensões. Uma água fervendo ao fundo, por exemplo, alude à ebulição interna de Pâmela, e um repentino silêncio pontua sua possível redenção: no pacote de miçangas aberto em prato raso, vislumbra-se remédios para um novo futuro.
A montagem também virgula o suspense: enquanto Tícia ajuda Pâmela no abortamento, uma cobra as espreita. Nem o colo e o chamego de umas das mais bonitas cenas do cinema artesanal recente anuviam a preocupação do público. A culpa e o pecado – elementos muito presentes da filmografia de Camelo – parecem prontos para o bote. Mas, apesar das ameaças, As Miçangas é um filme esperançoso, que liberta feras.
Para além do tema, Infantaria e As Miçangas partilham outros afluentes. A água, que brota com força nos dois filmes, é um elemento recorrente em discursos, cinematográficos ou não, sobre a mulheridade – não há como esquecer o peso cultural da figura shakespeariana de Ofélia, que se mata afogada, literal e figurativamente, para escapar de seus aprisionamentos. Aqui, porém, observa-se emancipações. Tícia e Pâmela flutuam para se preparar para batalhas internas, enquanto Joana tem plena consciência da necessidade, inclusive metafórica, de se aprender a nadar.
Também participam da Berlinale os curtas nacionais A árvore, de Ana Vaz, como parte da mostra experimental Forum Exapanded, e Solmatalua, de Rodrigo Ribeiro-Andrade, com exibição na Semana da Crítica. O país também emplacou, no Fórum, o longa O Estranho, de Flora Dias e Juruna Mallon. Já na seção Panorama, Daniel Bandeira apresenta Propriedade – também estrelado por Ane Oliva. O saudoso Milton Gonçalves brilhará novamente com o clássico de 1974 A Rainha Diaba, de Antonio Carlos da Fontoura, em versão digitalizada em 4K, restaurada para o Forum Special. Depois de tantos sufocamentos, o cinema brasileiro retorna à superfície.