Curtas impressões: Festival Cabíria (Parte 2)

#Crítica – Confira os comentários da nossa colaboradora Juliana Gusman sobre os curtas exibidos no Festival Cabíria, que acontece até o dia 3 de agosto. Os filmes estão disponíveis na Plataforma Cardume.

TRANSVIAR


Transviar (2021), de Maíra Tristão, foi filmado em 16mm, como se tentasse resgatar, na película, as rugosidades de outro tempo. Na verdade, um documentário como este não poderia se esquivar de elevar texturas. Fala, afinal, sobre a tradição das paneleiras do Espírito Santo, que de tato em tato modelaram experiências coletivas.  A protagonista Carla da Victória pertence à quarta geração de mulheres que vivem da arte do barro, mas expande tradições ao manejar suas habilidades para lavrar o próprio corpo, também artefato, também artifício. Feminilidades não se erguem sozinhas, precisam ser talhadas na carne.
Em seu auto-esculpir, Carla supera animosidades. Neste mundo violento, normativo e protocolar, não se amolda gêneros livre ou impunemente. Pessoas trans, como ela, costumam se deparar com atropelos nada insignificantes. Da mesma família que lhe legou o ofício, por exemplo, Carla nem sempre herdou acolhimentos. Sem esmorecer, porém, a personagem vai costurando em linha de prosa as semelhanças entre seu trabalho e sua vida, achegando possíveis resistências. As imagens acompanham o ritmo alternante e lacunar da narrativa, que não se preocupa em arrematar sentidos. Transviar arquiteta potentes indefinições.

UMA NOITE SEM LUA

Avizinhando-se de Transviar, Uma noite sem lua (2020), de Castiel Vitorino Brasileiro, é uma obra plástica, sensorial. Recorre ao preto e branco para modificar e renovar visualidades, que, por sua vez, virgulam uma oralidade altamente reflexiva e ensaística, embalando cantos dispersos de uma vida em transição. As imagens – sempre em movimento – nos preparam para o transe desse relato de si espiralar, que dá voltas para se esquivar de fechamentos. Este filme também sugere que há algo de libertador nas incertezas.
Uma noite sem lua é, em certa medida, uma obra sobre os limites da linguagem e de uma certa tradição ocidental, burguesa, masculina e embranquecida do conhecimento, historicamente empenhada em disciplinar e ordenar o mundo em simplificadas categorizações. Este curta explode confortos e escava, dos escombros das convicções, encruzilhadas emancipatórias. Até o conceito da travestilidade se abala nos tumultos, caso seja manuseado para classificar e aprisionar a imprevisibilidade das transmutações do corpo. Aqui, nem a ideia de humano cabe mais. Como nos lembra a filósofa Judith Butler, o acesso ao terreno privilegiado do reconhecimento é restrito a poucas vidas, enquanto outras padecem na desimportância. Se nem todo mundo conta como gente, por que reclamaríamos fracos pertencimentos?

Tampouco a epistemologia provocativa de Butler parece dar conta das reinvenções ensejadas por Uma noite sem lua, pois, como se argumenta, “há mais mistérios entre o Brasil e pombagiras do que o queer pode prever”. Estejamos abertos a eles.  

CURUPIRA E A MÁQUINA DO DESTINO

Não há nenhuma convenção formal capaz de sugerir que Curupira e a máquina do destino (2021), de Janaina Wagner,é um documentário. Assim como sua obra-mãe inspiradora, Iracema – Uma Transa Amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1981), este curta se aventura no limiar da ficção – e ousadamente ultrapassa-o, sem constrangimentos. Reivindica a narrativa fantástica para resgatar a personagem título do clássico matricial, que, no entanto, não é mais a personificação dos impactos devastadores de um falso progresso que assolou o Norte do Brasil durante os anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985). A Iracema de Janaina Wagner reencarna ancestralidades para plantar futuros.

A protagonista, entretanto, tem que transpor as asperezas da infertilidade. Mesmo em terras úmidas, o fogo abocanha esperanças. Com sua força indicial, as fotografias de arquivo não deixam dúvidas sobre a envergadura da destruição. O Distrito da Realidade, cenário da jornada da nova Iracema, não poderia ter um nome mais apropriado – e desesperador. Não há como maquiar aniquilamentos. Talvez por isso a reação imaginada tenha que brotar em outras frentes, das alianças radicalmente opositoras com os curupiras, botos e cobras noratos. Só os saberes das Florestas podem adiar o fim do mundo. Se os fantasmas da ditadura ainda nos assombram, invoquemos os nossos espíritos guerreiros para batalha.

QUANDO CHEGAR A NOITE, PISE DEVAGAR


Assim como Curupira e a máquina do destino, Quando chegar a noite, pise devagar (2021), primeiro curta de Gabriela Alcântra, oscila entre o real e o sobrenatural, só que na chave da ficção. Alcântra recorre a estruturas de linguagem clássicas do cinema de gênero, sobretudo do suspense e do terror, mas para abalar convenções acimentadas. Na trama, Caia, vivida pela excelente Mohana Uchôa, acaba de se mudar para um novo apartamento e eventos cada vez mais atemorizantes começam a acontecer. 

A filiação da obra é evidenciada logo na primeira cena: a protagonista, pesquisadora do audiovisual, assiste a À meia noite levarei sua alma (1964), de José Mojica Marins, expoente do horror nacional. Neste filme, o icônico coveiro Zé do Caixão, interpretado pelo próprio diretor, violenta uma mulher, outro indício importante sobre as ameaças nada imaginárias que atravessam e perturbam a vida de Caia.

Em verdade, podemos supor que a protagonista é uma figura calejada por adversidades corriqueiras. Caia é uma jovem negra, que ama outras mulheres. Detalhes da direção de arte deixam entrever os rastros da sua militância, o que possivelmente lhe conduz a mais enfrentamentos. Qual infortúnio ela haverá de facejar agora?  

Na lida com o desconhecido, Caia recorre à Umbanda para ceifar intimidações. As armas midiáticas das religiões hegemônicas – o terço, a água benta ou o sinal da cruz – não são eficazes contra o mal que se abeira. Mesmo porque, nas suas doutrinas, a mulher é o diabo – monstruosidade que o próprio cinema nunca cessou de sugerir. Em Quando chegar a noite, pise devagar, a mulher é cura. Devemos temer pelos homens comuns.

UMA PACIÊNCIA SELVAGEM ME TROUXE ATÉ AQUI

Confira a crítica completa do filme de Érica Sarmet publicada originalmente do site Farofafá.

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