Mergulho Vertical – Formato é linguagem.

Gabriel Leal

#Crítica – “Não estou ansioso por adentrar na ancestralidade sombria, fálica e sexual das formas verticais como símbolos de crescimento, força e poder.” Serguei Eisenstein¹

Após a realização do primeiro Festival de Cinema Vertical da Cardume na Taboom,  no início de junho, chegam agora à plataforma os quinze filmes participantes do evento. O formato vertical, apesar de não ser novo, ainda é pouco debatido como linguagem cinematográfica. O boom das câmeras de celulares no final da década de 2000 reacendeu um debate que nos remete aos primórdios do cinema, contexto em que os padrões de formato e duração das produções audiovisuais ainda estavam por se definir. 

Como bem nos lembra o autor David Bordwell em um texto de 2009, Serguei Eisenstein (1898-1948), grande cineasta e teórico russo dos primórdios do cinema, propôs ainda nos anos 1930 repensar o formato horizontal, refletindo sobre a necessidade de formatos dinâmicos e mais harmonioso, que favorecessem a criatividade dos cineastas e estivessem menos amarrados às definições da indústria. Em seu ensaio sobre o tema (The Dynamic Square – Eisenstein – Film Essay.pdf), Eisenstein enfatizou a busca do cinema por se desassociar das referências do palco ocidental no teatro e do padrão de pinturas (em sua maioria horizontais), com objetivo de propor outras maneiras de pensar a montagem e o enquadre dos planos. 

Mesmo existindo pressupostos biológicos que afirmam a nossa tendência de mover os olhos no eixo horizontal, Eisenstein argumenta haver uma compensação nos músculos no pescoço que facilitam o movimento vertical, contrapondo os movimentos dos olhos e servindo a uma harmonia da percepção:

“Nós vemos também nesse caso, no sentido puramente fisiológico da percepção, que a Sabedoria da Natureza nos providenciou com uma tendência compensatória para um equilíbrio que abrangem uma harmonia quadrada.²” – Serguei Eisenstein.³ 

Para Eisenstein, o formato da tela também poderia ser tomado como um elemento artístico, que dialoga diretamente com a fisicalidade e com o movimento dos objetos representados, assim como com o encadeamento de planos na montagem.
O debate estimulado pelo cineasta ainda se mostra necessário nos dias de hoje. Atualmente, pode-se perceber um certo enrijecimento inventivo nos filmes verticais, que apresentam dificuldade de sair da representação de imagens atreladas à estética dos celulares e das redes sociais. Na verdade, o que torna uma produção em formato vertical propriamente cinematográfica, ou seja, que remete à experiência do cinema em contraposição da experiência do vídeo e da internet, é  a própria proporção dos rolos das películas e os seus movimentos, tanto na captura da imagem quanto em sua projeção. De fato é isso que o cineasta experimental Paolo Gioli propõe em alguns de seus filmes, como Film Stenopeico (1989) (ver artigo de Bordwell já citado). Gioli usa a verticalidade como tema de seus filmes ao levá-la ao próprio aparelho cinematográfico (inclusive criando um aparelho próprio para isso). A investigação dele remete às experiências de Eadweard Muybridge (pioneiro dos estudos da imagem em movimento), mas no caso de Gioli há uma mudança de eixo da horizontal para a vertical. O que Gioli enfatiza com seus experimentos é uma perspectiva cinematográfica (no sentido de mais orgânica e agradável) a alguns tipos de movimentos ou espaços quando passados ao formato vertical, como é o caso da cena de uma mulher tirando a roupa por cima da cabeça em Stenopeico.

Entre os filmes verticais exibidos do Festival da Cardume, visões, do diretor Maikon Nery, consegue propor inovações neste sentido. Como o próprio diretor indica, o filme é um experimento audiovisual que sai de um desdobramento do livro Cianureto de Isabela Cunha, que almeja dialogar com o formato desse objeto, explorando, também, as potencialidades do formato de uma película analógica. É por isso que seu enquadramento é ainda mais estreito do que o habitual nesses filmes. A movimentação vertical também nos remete ao movimento da gravação de uma película, ou mesmo a sua projeção. A experiência de assistir a visões é de outro tempo, do analógico e do experimental.

O debate entre o Wildescreem (tela em horizontal, geralmente 16:9) x Tallscreem (telas em verticais, geralmente 9:16) só tem sentido quando pensado em seu uso como linguagem. Os filmes da era cinemascope (2.66:1), em especial os westerns,  enfatizam a horizontalidade para acentuar o espaço e mostrar a solidão do homem diante dela. Uma temática recorrente nesses filmes é a busca de identidade de seu personagem diante da exploração de um cenário amplo e ainda não conquistado. São filmes sobretudo de histórias da fundação dos Estados Unidos e, assim, os aspectos citados parecem ganhar ênfases com o formato ultra horizontal. Em contraste, os formatos verticais, ainda que muito menos explorados como linguagem, podem se referir, por exemplo, a uma forma de aspirar aos céus e encontrar a Deus, como na arquitetura das igrejas góticas da Idade Média. Essa relação espiritual com a verticalidade não é obrigatória; muitos dos formatos verticais na pintura e nos vídeos enfatizam, por outra via, o corpo humano. A publicidade fez isso muito bem: marcas de roupas costumam exibir seus desfiles em telas verticais em suas lojas. (ver reportagem OGlobo de 2010). 

Inclusive, um dos manifestos do Vertical Cinema (iniciativa alemã de 2013) enfatiza que se o homen sapien deixou as quatro patas para caminhar em duas o cinema também deveria fazê-lo! 

“O papel é vertical. Os livros são verticais. A internet toda é vertical. Todos os telefones de hoje são feitos para serem usados na vertical. A humanidade demorou milhões de anos para aprender a caminhar em dois pés!! O vídeo vertical é o novo padrão e redefine a imagem em movimento… Acorda, levanta, alonga!!!”4

A verticalidade não é novidade como formato, mas pensá-la no cinema como linguagem é ainda um caminho pouco explorado. A Taboom e a Cardume deram um importante passo nesse sentido, e uma segunda edição do festival será muito bem vinda. Seria muito interessante, ainda, a exibição desses filmes em espaços físicos – penso que o Centro de Moda de Belo Horizonte, por sua arquitetura gótica, pode ser um espaço ideal. O primeiro festival de cinema vertical no mundo, o “Vertical Film Festival” realizado na Austrália desde 2014, pode nos deixar bons exemplos de como pensar esse evento por aqui. Em seu site eles dão dicas para os realizadores para potencializar o uso desse formato a partir de enquadres, movimentos e muitos outros aspectos. Esperamos que o primeiro festival de filmes verticais no Brasil tenha longa e comprida existência. 


  1. Livre tradução: “I am not anxious to enter into the dark phallic and sexual ancestry of the vertical shape as symbol of growth, strength, or power. It would be too easy, and possibly too offensive for many a sensitive hearer!” Sergei Eisenstein (The Dynamic Square, 1927, pág. 49-50).
  2. O “square harmony” ao que o texto de Eiseintein se refere parece indicar uma harmonia que dá o mesmo valor aos diferentes lados, como a de um quadrado.
  3. Livre tradução: “We see that also in this case, in the purely physiological means of perception, the  Wisdom of Nature has provided us with compensatory movements tending to the same all-embracing square harmony”. Sergei Eisenstein (The Dynamic Square, 1927, pág. 61)
  4. Livre tradução: “Paper is vertical. Books are vertical. The whole Internet is vertical. All phones today are made to be used vertical. Mankind took millions of years to learn to walk on two feet!! Vertical video is the new standard and redefines the moving image… Stand up, get up, get high!!” (http://verticalcinema.com/)
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