Os amores teimosos das noites do Bailão

#Crítica – Curta-documentário de Marcelo Caetano sobre a persistência dos afetos gays chega à plataforma Cardume Curtas

Por Juliana Gusman

Em Corpo Elétrico (2017), Marcelo Caetano não se acanha diante de um carinho explícito. Neste que é seu primeiro longa-metragem, aborda, sem comedimentos, as audiovisualidades do sexo gay. Em Bailão (2009), porém, o desejo faísca discreto, na energia contida de um roçar de pernas ligeiro e sorrateiro – arriscado, com frequência, em cantos não vistoriados pelos lanterninhas dos cinemas de rua. No documentário que lhe conferiu notoriedade no Cine PE Festival Audiovisual em 2010 e que chega, neste mês, na plataforma Cardume Curtas, Caetano desobedece ao alerta de “proibido fotos ou filmagens” pregado na porta do ABC Bailão para esmiuçar os amores encabulados das bichas velhas, com toda a carga de boniteza e renitência que as afabilidades (des)viadas podem ter. 

No plano das imagens, valoriza-se a paisagem urbana – erigida não apenas pelas figurações da danceteria que titula o filme, mas pela exploração das galerias, dos prédios, das ruas e dos botecos do centro de São Paulo, onde se arquitetam sexualidades fora da norma. Dá-se a ideia de uma investigação sociológica, embora a obra dialogue muito pouco com documentários investidos dessa alcunha – objetivos, quase jornalísticos, corroborados por ímpetos de cientificidade. Bailão não se interessa pela construção de tipos sociais ou por retratar, com fidelidade, hábitos soturnos da noite paulistana, mas em empreender a arqueologia afetiva de uma geração fadada a se apaixonar nos becos. 

No plano do som, se alinhava o flaunerismo da câmera com depoimentos que trazem a força disruptiva do encontro entre o pessoal e o político, como já bradavam as aliadas feministas. Um dos homens, por exemplo, diz reconhecer a revolução que pode significar uma querença queer, ou, até mesmo, a mais pacata amizade masculina. Como nos lembra Michel Foucault, a heterossexualidade não comporta a menor das afeições varonis. Assim, almeja-se derrubar as barricadas da virilidade. Mas a rebelião, diz outro depoente, veio tarde, ou quando seus corpos amotinados já estavam domesticados, domados e envergonhados por homofobias coletivas, ou quando já estavam mortos, sobretudo pela Aids, que deixou pouco espaço para resistências. Na verdade, das brechas encontradas durante a repressão da Ditadura Militar, à criação do histórico grupo Somos e às transformações e intervenções na própria carne, discorre-se, principalmente, sobre as dificuldades do processo de se conseguir, como bicha, envelhecer.  

Apesar das adversidades expostas, há uma aposta otimista no poder o cinema de reparar traumas e de estimular excitamentos. Não parece por acaso que o primeiro depoimento do documentário se dê numa sala de projeção. Foi neste espaço um tanto quanto mágico, capaz de esboçar horizontes mais auspiciosos e de abarcar outras formas de ser e estar no mundo, que a personagem se percebeu comum. No seu primeiro roçar de pernas, descobriu que não era a aberração que pensava ser. Existiam outros, muitos outros, que haveriam de se encontrar nas curvas da cidade e de festejar novas normalidades com chamego e dança. Até a câmera de Caetano se rende ao rebuliço do Bailão, incontida diante dos versos de Ângela Rô Rô : “Não penso ter a vida inteira para guiar meu coração. Sei que a vida é passageira, e o amor que eu tenho, não”.

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