Terror e comédia como armas da crítica

#Crítica – Um filme de baixo orçamento (Paulo Leierer, 2018) e Distorção (Paula Pardillos e Davi Revoredo, 2019) usam o cinema de gênero para tensionar, cada um a sua maneira, as armadilhas das mídias. 

Por Juliana Gusman

No último dia 24 de março, somaram-se ao catálogo da Cardume Curtas dois filmes que, em verdade, tem pouco em comum. Um filme de baixo orçamento (Paulo Leierer, 2018) e Distorção (Paula Pardillos e Davi Revoredo, 2019), no entanto, aproximam-se em pelo menos duas instâncias: ambos fazem uma aposta, destemida, no cinema de gênero – respectivamente, na comédia e no terror – e usam essas tradições para tensionar, em alguma medida, os impactos das mídias na vida cotidiana, dos mais aos menos auspiciosos desdobramentos. 

Um filme de baixo orçamento, que passou por importantes festivais, como o de Gramado, talvez possa ser classificado como o que se costuma chamar de “mockumentary”, ficções que usam das convenções formais do documentário para provocar espectatorialidades acomodadas, desafiando nossas crenças diante da imagem. Um marco do gênero é o clássico A bruxa de Blair (Eduardo Sánchez e Daniel Myrick, 1999), que amedrontou plateias que acreditaram, até os créditos finais, na referencialidade dos acontecimentos. No curta de Leierer, porém, o efeito é outro, uma vez que a essa tática articula-se uma acentuada veia cômica. O deboche e o absurdo são a força do filme, que não deixa espaços para dúvidas sobre a (in)veracidade dos fatos narrados. Em outra chave, proporciona, com escárnio, instigantes reflexões.  

A obra acompanha, com esta abordagem, os esforços de um grupo de cientistas do Instituto Brasileiro de Pesquisas Alternativas e de Segunda Importância para manter aberta a instituição que se vê ameaçada pela falta de verbas. A solução para o infortúnio seria a produção de um vídeo institucional que demonstrasse a importância de suas ações. Com fortes atuações de Marcello Airoldi, Daniel Dottori, Ana Paula Dias e Lecio Rabello, o filme não deixa de ser uma crítica à pseudociência quem vem comprovando seus malfeitos nos últimos anos pandêmicos. As personagens caricatas rebaixam arroubos de charlatanismo ao ridículo, num ótimo sentido. 

Por meio desses duvidosos pesquisadores de grande qualidade humorística, aproveita-se para ironizar o imaginário comum sobre o próprio fazer cinematográfico. Em determinado momento da obra, por exemplo, quando a equipe de filmagens, não remunerada, desiste do projeto do vídeo, o Dr. Miguel, interpretado por Airoldi, pergunta ao diretor: “Mas esse cara recebe pra segurar o microfone?”. De certa maneira, o Um filme de baixo orçamento também satiriza nossos mais utópicos otimismos em relação às narrativas documentais, frequentemente empenhadas em transformar realidades infortunadas. Não será, obviamente, uma produção audiovisual que resgatará o Instituto da insignificância, ainda mais quando a empreitada passa a ser assumida pelos cientistas, que não economizam nos mais toscos movimentos de câmera e efeitos de edição. Um filme de baixo orçamento talvez arvore pretensões mais modestas para o cinema. Ele mesmo cumpre a função, importante, de entreter. 

Em Distorção, os alvos dos questionamentos são os programas policialescos, grandes sínteses da ideologia televisionada, já que naturalizam valores e perspectivas das classes dominantes, pouco auspiciosas para os sujeitos populares que almejam interpelar. O filme, inspirado no surrealismo de David Lynch e que já circulou por dezenas de festivais, se aprofunda nos receios crescentes de sua protagonista, Socorro, interpretada por uma afiada Vânia Maria. Confrontada diuturnamente com relatos de crimes e de outras violências, Socorro encontra-se aprisionada em sua casa, temendo ser vítima dessas mesmas atribulações. Enquadramentos estratégicos e efeitos visuais tentam sempre imprimir que algo se interpõe entre a personagem e o mundo concreto – afinal, ela habita o simulacro engendrado pelos meios de comunicação. Podemos afirmar que a obra desacredita a capacidade de resistência  das audiências, manipuladas pelo que de pior há no jornalismo brasileiro. Mas o papel da ficção, às vezes, é justamente amplificar e exagerar situações habituais para torná-las mais evidentes. 

Distorção é um filme que joga bem com os pressupostos do suspense. A angústia elaborada em torno de uma figura indistinta, toda vestida de preto e cada vez mais próxima do apartamento de Socorro – seria ela a materialização do próprio medo? – conduz o escalar do conflito eminente. E nada de afagos no desfecho: as mídias são muitas, e não há como escapar de suas representações.

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