Três Tigres Esperançosos

#Crítica – A Cardume acaba de trazer para sua plataforma três filmes que passaram pelo O Festival Internacional de Cinema de Rotterdam.

por Gabriel Leal

O Festival Internacional de Cinema de Rotterdam (IFFR, em sua sigla em inglês) é considerado um dos cinco maiores festivais de cinema do mundo, junto com Veneza, Berlim, Cannes e Locarno. Sua seleção depurada opta por filmes de visão autoral, geralmente inovadoras e experimentais, de criadoras(es) independentes de todo o mundo.

A Cardume acaba de trazer para sua plataforma três filmes que passaram pelo festival nos últimos anos, na limitada participação brasileira no IFFR. Para se ter uma noção, apenas um longa brasileiro ganhou o festival: Baixio das bestas (Claudio Assis, 2007). E desde que o festival passou a ter seções competitivas na categoria de curtas e médias metragens, o Brasil nunca ganhou nenhum prêmio e teve apenas uma participação inconstante por lá. Nessa escassez de representatividade brasileira, essa pequena mostra nos permite abrir uma janela e entender a linha editorial desse festival, assim como a experiência de três autores que, embora partilhem classe e etnia, apresentam diferentes visões de mundo.

I.

Mauro, um jovem tradutor e ilustrador que vive entre festas blasé e corridas noturnas pela cidade, revela uma solidão e busca escapar da sua caixa urbana construída hermeticamente. A saída desenhada por ele foge de suas próprias linhas retas e sem vida, encontrando uma natureza curvilínea entre as montanhas e os corpos humanos.

Long Bueno (Abilio Dias, 2017)

Construído com uma estética de traços precisos, que podemos ver em seus movimentos de câmara e em seus enquadres, Long Bueno (Abilio Dias, 2017) desnuda seu personagem principal no que parece ser um auto retrato ficcional. Em sua obra de estreia, Abílio desenvolve o naturalismo da atuação e a construção de um roteiro de ênfase no cotidiano, gerando um respiro autêntico e profundo de seu protagonista. A pureza minimalista de suas composições exclui tudo que não serve ao universo de seu personagem, protegendo-o de confrontos com a imperfeição e os limites menos exatos da vida. Nesse sentido, o filme se constrói a partir da vaidade de Mauro, quase livre de defeitos. A melancolia e doçura da vida desse homem são buscas de si mesmo em meio a um retrato de uma São Paulo lindamente morta, em uma busca espiritual e estética que remete às obras do pintor David Caspar Friedrich, não por casualidade um romântico do século XIX.

Morning in the Mountains – David Caspar Friedrich (1823)

Interpretada desde uma perspectiva macropolítica do seu ano de realização, 2017, Long Bueno ressoa um Brasil então anestesiado pelo golpe de estado, que vivia (vive) um forte abalo identitário e ideológico. Talvez, respondendo de forma introspectiva a esse presente, o Brasil de então buscava (busca) refúgio em um passado nostálgico e romantizado, como o que vemos ao início do filme das três crianças caminhando pelas montanhas, em uma memória-onírica do protagonista.

II.

Em Primeiro Ato (Matheus Parizi, 2019) dois jovens de origens sociais e econômicas distintas questionam a arte e as estruturas de poder dentro da micropolítica da sala de aula em uma faculdade pública de teatro. Encontrando-se em seus desassossegos, André e Gabriel forjam uma amizade profunda e ao mesmo tempo juvenil, repensando o mundo que ainda estão por conhecer. O filme apresenta uma visão irônica e auto crítica de uma geração insatisfeita com o presente, mas perdida e confusa com as saídas para um futuro em que possam sentir-se parte.

Primeiro Ato (Matheus Parizi, 2019)

O diretor tem uma trajetória experienciada e consistente e cria de forma inteligente personagens ambivalentes e multidimensionais que são potencializados em atuações vívidas e precisas por seus atores (em especial pelos protagonistas, Lui Seixas e Jorge Neto). A ingenuidade política de seus personagens (que corresponde a do filme como um todo) é também o que lhes dá frescor e energia para seguir acreditando em mudanças – seguir mordendo a maçã proibida com voracidade é o que lhes permitirá construir, com muita auto consciência e incertezas, uma vida própria para além de um paraíso anacrônico.

III.

Trabalhadora de uma fábrica têxtil, Vitória (Ricardo Alves Jr, 2020), também o nome da protagonista, sente uma dor no coração e tem o diagnóstico claro do médico: estresse. O que o doutor não entende é a causa dessa situação, mas ela sim sabe: a precarização de seu trabalho. Inconformada, ela ajuda a montar uma greve, que em sua iniciativa e articulação com outras trabalhadoras já marcam uma vitória.

Dos filmes aqui referidos, Alves Jr. e o roteirista Germano Melo talvez conformem a equipe mais experiente, sendo seus trabalhos referências na cena teatral e cinematográfica de certo circuito de arte no Brasil e no exterior. Ricardo, cuja obra de estreia é Matéria Bruta (Alves Jr, 2006), um trabalho experimental com material de arquivo, passa por um arco de transformação de suas obras até chegar em Vitória, concretando com mais solidez seu discurso político, sem deixar de correr um risco de ser demasiado simplista. Arriscando-se por um terreno ainda não explorado em sua cinematografia, Alves Jr. se volta para uma linguagem mais direta, acessível e política, assim como vimos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles fazerem em Bacurau (2018). Mas bem diferente dos colegas, que optaram por renovar os filmes de gênero exploitation, Ricardo dialoga com o realismo socialista inglês (que tem desde os anos 60 seu máximo representante Ken Loach). Assim, com uma estética dura e precisa, como uma máquina, a construção do universo fechado dessa fábrica e personagem (interpretada por Rejane Farias) colocam o humano como mais uma peça dessa estrutura. O enfrentamento desse sistema se dá a partir da voz de Rejane, que se faz ser ouvida organizando o grupo de trabalhadoras contra os motores ensurdecedores, e liberando-as desse encerro.

Vitória (Ricardo Alves Jr, 2020)

Pela ordem cronológica de realização desses três filmes (2017, 2019 e 2020) observamos uma trajetória que começa em Long Bueno, que apresenta uma auto referência, uma voz própria e que é esteticamente mais original, com uma construção de personagem ambígua, embora engendre um discurso ausente de questões sociais e políticas. Já em Primeiro Ato, observa-se uma medida justa entre o social e o individual, permitindo uma reflexão ampla sobre o abismo que estamos e a possibilidade de construir pontes a partir dos laços fraternos. Por fim, chegamos em 2020 com Vitória, uma história centrada em uma personagem distanciada da realidade do autor, com uma conscientização sócio-política marcada, deixando a complexidade de personagens e discurso para ir a algo mais direto e urgente diante de uma conjuntura nacional destruída que busca se reerguer. Porém, por que a conscientização política e de classe precisa vir acompanhada de uma simplificação do discurso e da construção de seus personagens? Falar de um outro na era do cancelamento é um risco grande e parece que tendemos a seguir por um caminho mais seguro e talvez, por isso mesmo, menos interessante. Matheus Parizi parece encontrar um caminho menos achatado, mas,  de qualquer forma, o salto estético de Ricardo Alves Jr. é vitorioso pelo seu próprio ato, assim como o de sua protagonista.

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