Mulheres na base do movimento operário

#Crítica por Gabriel Leal

1979, interior do banheiro/vestiário feminino de uma fábrica do ABC paulista. A dinâmica de um quarteto de personagens estabelece um discurso tanto de efeito quanto de afeto sobre nosso tempo presente em um campo de várias frentes de luta, em especial na luta feminista dentro do movimento operário. A escolha por esse tempo e local intensifica dramaticamente a construção da premissa: quatro mulheres metalúrgicas em seu intervalo de almoço convivem com suas diferenças e durezas, encontrando, nos poucos minutos de respiro de suas rotinas, sororidade. Ao juntar tema, personagens e conflito em torno de um contexto pertinente, a flecha vai direto ao coração, como diria o consultor e roteirista Eliseo Altunaga.

Chão de Fábrica (2021, Nina Kopko) estabelece de forma precisa um recorte temporal a partir de suas particularidades, conflito e dinâmica de personagens, tornando mais evidente seu discurso, assim como podemos ver no filme “Retrato de uma Jovem em Chamas” (2019, Céline Sciamma). No caso do filme de Sciamma, situado no século XVIII, o longa-metragem constrói, dentro de uma estrutura clássica, a história de três mulheres de diferentes classes sociais: Mariane, da burguesia artesã/artística; Héloïse, da nobreza; e Sophie, da classe trabalhadora. Essa base de personagens permite uma análise ampla sobre a situação da mulher em diferentes espaços da época para reiterar as injustiças e opressões do sistema patriarcal sobre todos os corpos femininos. Kopko utiliza-se de um tempo mais enxuto de um curta-metragem para construir com quatro personagens uma análise não menos complexa.

A abordagem psicológica da gestalt-terapia, ao se posicionar contrária ao retorno à infância, insistente na psicanálise da época, ressalta que a verdade sempre se inscreve no aqui e agora, e o passado só interessa como possibilidade de transformação do presente, o único tempo de mudança real. Assim, o uso desse passado em “Chão de Fábrica” dialoga diretamente com os dias atuais, estabelecendo diferentes espectros de mulheres dessa época, expandindo suas construções tipificadas para um maior aprofundamento. Joana, por exemplo, é a “fura-greve”, como a narradora pontua, e vai de uma figura seca e mal humorada a de uma mãe trabalhadora, que, após ser tantas vezes demitida, decide evitar o envolvimento em movimentos sociais para proteger seu filho, marcando um conflito interno que irá acompanhá-la até o fim de sua vida.

O curta, premiado em vários festivais de norte a sul do país, conversa com uma série de filmes dos anos 80, como “Eles não Usam Black Tie” (1981, Leon Hirszman) e “O Beijo da Mulher Aranha” (1985, Hector Babenco). Chão de Fábrica parece proporcionar uma atualização e amplificação dessas buscas estéticas, narrativas e políticas de personagens atravessadas por dilemas éticos e afetivos diante da falência moral de um sistema ditatorial. Um elemento interessante desse cinema é seu diálogo com outras linguagens como a do teatro e da literatura, que como o filme de Kopko, são adaptações. No caso de Chão de Fábrica, o qual é livremente adaptado da peça “O pão e a pedra” (criação coletiva da Companhia do Latão, incluindo Helena Albergaria, atriz que interpreta Joana no curta), o uso de uma narradora, recurso também utilizado na peça, é somado à mise-en-scène, por vezes de planos fixos e mais abertos, que remetem a uma movimentação de palco. Outro recurso é  o uso de personagens conceituais, que reiteram características representativas, como no exemplo citado em “Retratos de uma Jovem em Chamas” e servem a uma estrutura de cunho mais discursivo, mas não perdem de vista a dimensão dramática, algo também bastante característico de certos movimentos teatrais.

Falando em transposições entre linguagens diferentes, ao ler o roteiro do curta-metragem escrito por Tainá Muhringer e Nina Kopko percebe-se o amadurecimento da história ao tornar-se filme. A começar pela seleção do elenco, tanto pela qualidade da atuação, quanto pela diversidade de corpos, que conseguem superar as camadas subterrâneas de sentido proposto no texto. Encontra-se em cada personagem lugares próprios que no roteiro estão desenhados, mas que de forma inteligente deixam espaços para o trabalho de criação das atrizes.

Em geral, o filme opta por minimizar diálogos presentes no roteiro, como na relação entre Irene e seu chefe Bigode, permitindo que os próprios silêncios e “tempos vivos” construam melhor a dinâmica interna das personagens e a progressão dramática, que é intensificada especialmente pela montagem de Lis Paim. A separação desses corpos, que se tratam com dureza e distanciamento em um princípio, passa ao final a uma união em torno do afeto de forma fluída e sutil, algo que no roteiro se sente mais explícito. A imagem das quatro tomando sol na cena final deixa clara a metáfora que centraliza a história, acumulando nessa imagem uma série de significados que culminam em catarse emocional e um fechamento bastante efetivo e poético que marca um cinema político, social e popular.

Uma história que desde sua proposta poderia ser excessivamente hermenêutica, parece a partir de uma conjunção entre roteiro, direção e montagem sustentar uma narrativa emocionalmente envolvente. Assim, ao invés de dar vozes a essas personagens invisibilizadas (conceito problemático, pois essas personagens têm vozes e não precisam que ninguém as dê), permite que nós espectadores, especialmente homens, possamos escutá-las.

Quatro mulheres de diferentes olhares atravessam e interpõem passado, presente e futuro e a partir da voz de Irene, lembramos com elas que essas e outras mulheres estiveram na greve de 79, mesmo que as fotos icônicas desse momento histórico as escondam. A voz é de apenas uma delas, mas os olhares e o discurso convergem, pois a luta é a mesma.

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